31 dezembro 2020

A Loucura de Sarah (The Haunting of Sarah Hardy, 1989)

Telefilmesquecidos #31

Telefilmes com Sarah no título não são incomuns. Pelo contrário. A profusão de protagonistas chamadas Sarah em filmes feitos para a TV é algo curioso. The Initiation of Sarah (A Iniciação de Sarah, 1978), Sarah T. - Portrait of a Teenage Alcoholic (Drama de Uma Adolescente, 1975), Sarah (1975), Sarah, Plain and Tall (Sarah, 1991), About Sarah (1998) e vários outros. 


Em A Loucura de Sarah, a personagem-titulo, ainda criança, testemunha o suicídio da mãe desequilibrada, que correu para o mar e se afogou, para nunca mais ser vista. Isso durante o funeral de seu marido, pai de Sarah. Apesar de não terem encontrado o corpo da mãe, Sarah nunca acreditou totalmente que ela estivesse morta. A mãe, por sua vez, antes de se matar, culpou Sarah por sua infelicidade. Desgraça pouca é bobagem.


Quinze anos depois, Sarah (Sela Ward) está se casando com o bonito e bem-sucedido Austin (Michael Woods). Na ocasião, reencontra seus dois grandes amigos de infância, presentes na cerimônia: Lucy (Morgan Fairchild), uma exuberante atriz de novelas, e Allen (Roscoe Born), um psicólogo tímido que nutre um amor antigo por Sarah.

Sarah (Sela Ward) e Austin (Michael Woods)

A protagonista decide se mudar com o marido para a casa de sua família, onde passara a infância, e reivindicar sua vasta herança. E, quem sabe, também fazer as pazes com seu traumático passado, que ainda a assombra. Sim, porque algo (ou alguém) ruim espera por ela. Na mansão, Sarah começa a ouvir o piano sendo tocado exatamente como sua mãe fazia, vê vultos indistintos, ouve a voz da mãe em casa e recebe até um telefonema de alguém que diz ser sua mãe. Mas o corpo sumira no mar e nunca fora encontrado, certo? Poderia ela estar viva, aterrorizando Sarah, já que a culpava pela morte do pai? Seja o que for, real ou imaginário, está levando Sarah à loucura.

Allen (Roscoe Born) e Lucy (Morgan Fairchild)

O filme pode até ser previsível para alguns, mas nem por isso deixa de apresentar um desfile de possíveis suspeitos. O primeiro deles é a mãe psicótica de Sarah, que estaria em busca de vingança quinze anos depois. O segundo é o melhor amigo de infância de Sarah, Allen, que sempre teve uma queda por ela, mas ela nunca pareceu se importar. A terceira suspeita é Lucy, outra amiga de infância que adora a mansão de Sarah. Seria ela uma inimiga ciumenta? O quarto suspeito é a Sra. Stepford (Polly Bergen), governanta de longa data da família de Sarah. O último suspeito é Austin, o marido bonito e compreensivo de Sarah, que queria se mudar para a mansão. Ou será que Sarah herdou o gene de insanidade da mãe e tudo não passaria de uma grande alucinação?

Sra. Stepford (Polly Bergen)

O filme tem um clima irresistível para quem aprecia esse estilo de trama, cheia de mistérios e reviravoltas, que lembra os telefilmes do começo dos anos 1970. É uma história sombria de perda, culpa e traição. Sarah teve uma vida trágica. E embora todos ao seu redor agora pareçam sinceros e leais, sabemos que pelo menos um deles esconde más intenções. Em algumas situações, A Loucura de Sarah lembra o clássico À Meia Luz (Gaslight, 1944), de George Cukor. Mesmo assim, o filme não teve nenhuma pretensão de ser mais do que foi: uma produção para a TV a cabo, bem executada, dadas as devidas limitações.

Dirigido por Jerry London, A Loucura de Sarah estreou nos EUA em 31 de maio de 1989, no canal USA Network (uma das populares redes de tevê a cabo dos EUA, rebatizada de Universal Channel no Brasil e na América Latina). Aqui no Brasil, o filme foi exibido pela primeira vez no Supercine, da Rede Globo, em 1º de julho de 1995. "Esta mulher sempre foi perseguida por uma terrível alucinação. Agora, está sendo vítima de uma trama de mistério e ambição". As chamadas dos filmes inéditos do Supercine eram um deleite à parte. 


A Loucura de Sarah foi lançado em vídeo no Reino Unido pela CIC Video, ainda em 1989. Pouco depois saiu em VHS aqui no Brasil, também distribuído pela CIC. Era uma fita bem comum nas videolocadoras. 



24 dezembro 2020

O Homem na Roupa de Papai Noel (The Man in the Santa Claus Suit, 1979)

Telefilmesquecidos #30

Três homens muito diferentes, em situações de desespero, acabam em uma loja de fantasias onde o misterioso (porém amistoso) proprietário, interpretado por Fred Astaire, aluga para cada um deles uma roupa de Papai Noel.

Para Stan (John Byner), um ex-chef que virou morador de rua tentando se esconder da máfia, o dono da loja explica que o traje não transforma um cara mau em bom. Para o tímido professor Bob (Gary Burghoff), ele tenta encorajá-lo a se declarar para a garota que ama, apesar de ela estar namorando um homem rico. E também há Gil Travis (Bert Convy), um empresário ligado à política, ocupado demais para passar tempo com sua esposa e filho, aconselhado a aproveitar ao máximo seu tempo com a família.

Em meio às situações de crise, ao usarem a roupa de Papai Noel, os três homens adquirem novo ânimo e capacidade para resolver seus problemas. Entre os encontros, desencontros e trapalhadas, a vida dos três se entrelaça e muda depois de suas experiências com os trajes do bom velhinho. No final, a identidade real do dono da loja é revelada.




A verdade é que não há nada nessas histórias que realmente prenda muito a atenção. O filme se escora em Fred Astaire (na época com 80 anos) interpretando múltiplos personagens divertidos. Apesar do respeito que Astaire merece pelo que traz de bom para o filme, o roteiro fica aquém da grandiosidade do ator. Aqui ele aparece em vários papéis, interagindo com os três clientes de sua loja (ele interpreta personagens diversos como policial, motorista, vendedor de cachorro-quente e motorista de táxi, entre outros), embora ninguém o reconheça.

Astaire, um dos atores mais lendários da chamada era de ouro de Hollywood, considerado também o dançarino mais influente na história do cinema, faz aqui sua última participação em um telefilme. O tema de abertura, That Once a Year Christmas Day, é cantado pelo próprio ator. O Homem na Roupa de Papai Noel foi o penúltimo papel de sua carreira. O último foi em Histórias de Fantasmas (Ghost Story, 1981), de John Irvin. 

Fred Astaire

O filme é atraente por ser estrelado por Fred Astaire, e faz parte da memória afetiva de quem o assistiu nos anos 1980, nas incontáveis reprises do SBT. Filmes antigos de Natal parecem ter um inegável poder nostálgico, mas o público de hoje pode acabar desapontado com a ingenuidade da história e seu ritmo meio arrastado para os padrões atuais. 

Dirigido por Corey Allen (que, no ano anterior, havia dirigido o longa Avalanche), O Homem na Roupa de Papai Noel é o tipo de telefilme em que os mafiosos "do mal" são um alívio cômico que não chega a funcionar muito bem. No entanto, o elenco, composto por uma série de rostos populares da TV americana, é bom. Como disse um crítico da Folha de S. Paulo, "quando Astaire é o ator principal, sempre alguma coisa se salva."


Estreou na TV americana em 23 de dezembro de 1979, no canal NBC. No Brasil, foi exibido pela primeira vez em 23 de dezembro de 1982, no SBT, e bastante reprisado nos anos seguintes, na época natalina. 

No final dos anos 1980, o telefilme foi lançado em VHS nos EUA e, depois, aqui no Brasil pela Nacional Video, com o título O Homem Vestido de Papai Noel.


17 dezembro 2020

A indefectível harpa natalina

Eu tinha 10 anos quando um vendedor ambulante de discos bateu na porta lá de casa. (Sim, naquela época ainda era comum vendedores baterem de porta em porta oferecendo enciclopédias, perfumes, roupinhas de bebê, toalhas bordadas, livros, discos, mapas-múndi etc.).

Foi pouco antes do Natal de 1989 que um desses vendedores bateu lá em casa, oferecendo discos natalinos (e também aqueles discos infantis com historinhas). Minha mãe acabou comprando o LP Mamãe, Feliz Natal, que trazia um simpático e sorridente Papai Noel na capa, com os votos de Feliz Natal em várias línguas, para os quatro cantos do mundo. Buon Natale, Joyeux Noel, Fröhliche Weihnachten, Merry Christmas.


Durante aquele período de Natal, esse LP foi tocado lá em casa à exaustão. Nos Natais seguintes ainda voltou a ser tocado, mas com o passar dos anos, foi ficando esquecido. Entretanto, a imagem da capa do LP, assim como a da contracapa, ficaram durante muito tempo em minha memória afetiva. (Quase uma década atrás fiz um post aqui sobre lembranças trazidas por capas de LPs antigos.)


O disco se deteriorou, mofou, enfim, foi deixado de lado. Outro dia, ao remexer em um armário (daqueles onde entulhamos coisas que passam décadas esquecidas), me deparei com o tal disco do Papai Noel. Canções de Natal são sempre batidíssimas e causam até enjoo nesta época do ano, em que são tocadas sem parar em tudo que é canto. Mas a sonoridade desse LP ficou muito marcada pra mim. Dei uma olhada na capa e, claro, viajei no tempo. Resolvi dar uma pesquisada para tentar saber mais sobre aquele obscuro — porém tão marcante — álbum. Ei-lo:


Trata-se, na verdade, de um LP do harpista Sílvio Solis, lançado originalmente em 1979 pela CID (Cia Industrial de Discos). Eu só o conhecia pelo nome e foto na contracapa do LP. Nunca ouvi falar, nem antes e nem depois. "De onde será esse homem? Será que ainda está vivo?", me perguntei. E fui fazer a típica busca no Google. Descobri algumas informações básicas, mas não há praticamente nada sobre ele. Pouquíssimas informações.

Silvio Solis, nascido no Paraguai, aprendeu a tocar harpa (e violão) com alguns dos melhores professores deste instrumento tão tradicional no Paraguai e na América do Sul. (O que, para mim, com o perdão da ignorância, foi novidade). Para quem não é familiarizado com as tradições latino-americanas, pode ser surpresa descobrir que a harpa é muito popular em vários países da região. 

Silvio Solis


A harpa, imortalizada pelo músico e intérprete paraguaio Luís Bordon (1926-2006), é o instrumento nacional do Paraguai, e parte integrante da música do país desde o século XVI. Uma pessoa carregando uma harpa na rua não é algo incomum por lá. Tanto que existem várias fábricas de harpa na capital, Assunção. Silvio Solis foi um dos primeiros a levar essa tradição para outras partes do mundo, com suas interpretações de guarânias, polcas, e galopas, típicas de sua terra natal.


Solis, que tem cidadania americana, toca harpa profissionalmente desde os 15 anos. Mais do que isso, também passou a fabricar seus próprios instrumentos depois de adulto. A harpa não é fácil de ser transportada, razão pela qual  o harpista paraguaio decidiu se tornar um luthier (profissional que constrói e conserta instrumentos musicais de forma artesanal), abrindo uma oficina em seu apartamento em Elmhurst, bairro predominantemente hispânico do Queens, em Nova York.

O harpista já se apresentou na Casa Branca, no Kennedy Center, Nações Unidas, no Lincoln Center, embaixadas em Washington DC e celebrações dos governos local e estadual. 


A título de curiosidade, a CID (selo pelo qual o "disco do Papai Noel" foi lançado) era também responsável pela prensagem dos famosos LPs e compactos infantis coloridos e transparentes da marca Carroussel. Nos anos 1970, a gravadora se especializou em lançar coletâneas de sucessos internacionais em versões cover a preços populares. Nos anos 1980, a CID se consolidou como gravadora e assumiu a estratégia de popularizar o LP. Vários artistas brasileiros em início de carreira também tiveram álbuns lançados pelo selo. 





11 dezembro 2020

Venha Passar o Natal Conosco, Papai (The Homecoming: A Christmas Story, 1971)

Telefilmesquecidos #29

Véspera do Natal de 1933, durante a Grande Depressão. Uma família americana pobre, que mora numa zona rural das montanhas, se preparava para comemorar o Natal. Esposa, filhos e avós estão ansiosos pelo retorno do pai da família, John Walton (Andrew Duggan), que havia encontrado trabalho na cidade.

Mas quando a esposa Olivia (Patricia Neal) fica sabendo de um acidente de ônibus nas redondezas, começa a preocupação. John não chega em casa quando deveria, aumentando ainda mais a apreensão de Olivia. Severa e obstinada, ela tenta manter o ânimo de seus filhos pequenos, enquanto manda o mais velho, John-Boy (Richard Thomas), sair em busca do paradeiro do pai. Em sua jornada, John-Boy passa por alguns desafios e se depara com uma variedade de personagens de sua comunidade, mas volta para casa sem cumprir sua missão. O que houve com o pai? Será que a família terá notícias dele até a hora da ceia natalina?



Trata-se de um filme para a TV extremamente bem adaptado, cheio de personagens carismáticos, com um elenco não menos carismático. A história fala de esperança e sobrevivência em circunstâncias difíceis, nas quais, muitas vezes, é preciso manter certa austeridade convicta para seguir lutando e fortalecer os laços de afeto e união.



Este é o telefilme que deu origem à popular série de TV Os Waltons, uma das mais famosas da década de 1970. Baseado na vida da família do autor Earl Hamner Jr., Venha Passar o Natal Conosco, Papai também teve seu roteiro escrito por ele. Além de autor e roteirista, Hamner Jr. foi também produtor de televisão, mais conhecido por seu trabalho como o criador da série The Waltons (na qual fazia a narração). Como romancista, ficou conhecido por Spencer's Mountain, publicado em 1961 e inspirado em memórias de sua própria infância. Além de base para a série Os Waltons, o livro já havia servido de base também para o filme Os Nove Irmãos (Spencer's Mountain, 1963), dirigido por Delmer Daves e estrelado por Peter Fonda e Maureen O’Hara.

Earl Hamner Jr. (à esquerda) e o ator Richard Thomas no set de The Waltons (1976)

Venha Passar o Natal Conosco, Papai estreou na tevê americana pelo canal CBS, em 19 de dezembro de 1971. Com o sucesso da audiência, uma série foi providenciada, usando o telefilme como piloto. A Lorimar Productions, subsidiária da Warner, convencer a CBS a dar continuidade às histórias dos Waltons. E em setembro de 1972, a série, intitulada The Waltons, estreou na CBS. O tema central era a vida de uma família norte-americana no meio rural do estado da Virginia, entre a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. O curioso é que, apesar do sucesso do telefilme, os produtores não levavam muita fé na série. Pelo contrário, acreditavam que não duraria muito. Mas o sucesso foi tão grande que Os Waltons durou nove anos e conquistou não só o público dos EUA, mas do mundo todo, com 221 episódios originalmente exibidos pela CBS. Depois do fim da série, ainda foram produzidos três filmes para a TV em 1982, e mais três na década de 1990.


No Brasil, Venha Passar o Natal Conosco, Papai estreou na Rede Bandeirantes, em 22 de dezembro de 1975. Mas a série Os Waltons já havia estreado na Rede Globo, em março de 1974, e era inicialmente apresentada às segundas-feiras, às 18h, na "Faixa Nobre". (A novela das seis ainda não havia se tornado parte fixa da programação). Ainda em 1974, a Globo havia exibido, em fevereiro, o "filme inédito" A Família Walton, que na verdade era o último episódio (The Easter Story) da primeira temporada da série (que só estrearia na emissora no mês seguinte). Um pouco confuso, não?

Todos os atores infantis de Venha Passar o Natal Conosco, Papai  participaram da série, mas para a maioria dos papéis adultos foram escalados outros atores e atrizes, exceto Ellen Corby, que continuou no papel da Vovó Walton. John Walton, que no filme é interpretado por Andrew Duggan, na série é vivido por Ralph Waite. E Patricia Neal, a Olivia Walton do filme, ficou para Miss Michael Learned, que a interpretou na série.

Edgar Bergen e Ellen Corby

Patricia Neal e Andrew Duggan

Patricia Neal ganhou um Globo de Ouro por sua interpretação de Olivia Walton, como Melhor Atriz de TV na categoria Drama, e ainda foi indicada ao Emmy de Melhor Atriz em Minissérie ou Telefilme, por sua atuação em Venha Passar o Natal Conosco, Papai.

A crítica americana da época se referiu a este telefilme como "um milagre de Natal". E explicou: "fazer um filme, no mínimo discreto, com um argumento desses, só pode ser um milagre. 

04 dezembro 2020

Pesadelo do Acaso (Nightmare in Badham County, 1976)

Telefilmesquecidos #28

Duas universitárias em viagem de férias, Cathy (Deborah Raffin), branca, e Diane (Lynne Moody), negra, têm um contratempo quando o pneu  do carro em que viajam fura, nos arredores do vilarejo de Badham. O xerife Danen (Chuck Connors), que passava pelo local, para e ajuda as duas. Mas não consegue esconder sua perturbação por ver uma garota branca e outra negra viajando juntas. Não demora muito para se mostrar um sujeito cínico, racista e violento.

Cathy e Diane reagem às grosserias do xerife e ele rapidamente arma um esquema para se vingar das duas: combina com o mecânico do posto de gasolina, que inventa um defeito no carro para que as moças não possam partir. Obrigadas a esperar, as duas resolvem passar a noite em um terreno baldio. É a desculpa para o xerife detê-las sob acusação de dormirem em área proibida.




Após um rápido julgamento encenado, o juiz corrupto (vivido pelo veterano Ralph Bellamy), mancomunado com o xerife, manda as duas jovens para uma fazenda-presídio de mulheres, onde deverão cumprir sua sentença. Começa, então, o ordálio de Cathy e Diane.


Não há guardas. A tal prisão rural é chefiada por "encarregadas de confiança" brutais, sádicas, intimidadoras e armadas. As presas brancas são separadas das negras. Para piorar, o superintendente Deaner (Robert Reed) é um degenerado sexual em pele de cordeiro.

As duas amigas descobrem, da pior maneira, que estão à mercê de um "sistema" de justiça ultrajante, que serve para dar suporte a fazendeiros locais com mão de obra escrava. Toda a região do condado de Badham tem suas regras e regulamentos próprios, e aqueles que questionam sua legitimidade acabam mortos. Cathy e Diane percebem que as encarregadas da prisão usam as internas também para outros fins, em uma espécie de escravidão sexual paralela. 



A sentença de um mês é prorrogada indefinidamente, a menos que elas se submetam aos desejos do superintendente. Não parece haver saída. Incomunicáveis, elas sabem que as probabilidades de conseguirem fugir e denunciar o regime corrupto são quase nulas. Já haviam sido advertidas de que nenhum morador branco da cidade ajudaria uma mulher negra e nenhum cidadão negro poderia se dar ao luxo de fazê-lo. A única chance seria, de fato, arriscar as próprias vidas e fugir.

O filme mostra as condições humilhantes das prisioneiras, mantidas trabalhando em condições análogas à escravidão. Isso em plena década de 1970. Há conflitos internos cruéis entre as presas, razão pela qual as duas protagonistas da história são interpretadas por uma atriz branca e outra negra. As tensões na fazenda-prisão são ainda mais exacerbadas pela segregação das detentas. Embora tanto as prisioneiras brancas quanto as negras sejam tratadas como mão de obra escrava, são as negras que recebem as tarefas mais servis.

A mensagem de fundo, sobre a denúncia da exploração comercial de prisioneiros, vem junto com outra mensagem, mais incisiva, sobre o racismo institucionalizado, ou qualquer tipo de racismo. Foi o que o canal ABC (American Broadcasting Company) arquitetou, antes de estrear seu telefilme. A princípio, seria mais um filme exploitation sobre moças na prisão. (Exploitation é um gênero de filmes que mostra, de forma sensacionalista, apelativa e algumas vezes até mórbida a temática que se propõe a tratar. Existem vários subgêneros desse tipo de filme. Mulheres na prisão é um desses subgêneros.)

Cortaram as "baixarias" típicas desse tipo de produção (cenas de sadomasoquismo, mulheres nuas ou seminuas se engalfinhando, ou sendo chicoteadas por outras mulheres, abusadas, agredidas etc.) e acrescentaram um aviso antes da abertura: "O filme a seguir foi inspirado por condições reais de certas partes do país. Esta história é uma ficção baseada nessas condições."


Tudo que a ABC precisava era de uma versão suavizada do filme, para exibição na TV — razão pela qual, espertamente, solicitou os cortes e ajustes. Mas o longa não foi produzido com a intenção de ser lançado nos circuitos de cinema. A ideia só veio depois. Até então, os únicos telefilmes com esse mérito eram os aclamados Encurralado (Duel), de Steven Spielberg, e Glória e Derrota (Brian’s Song), de Buzz Kulik, ambos de 1971 e exibidos na tevê americana em novembro daquele ano.

Trocando em miúdos, Pesadelo do Acaso foi inicialmente concebido como filme exploitation, do tipo que era exibido em cinemas drive-in nos EUA. Mas a ABC percebeu que ele tinha potencial para o horário nobre da TV, contanto que fosse remodelado como um "telefilme sério" e politicamente engajado. Mais tarde, depois da estreia na TV, o filme ganhou cenas adicionais para apimentar o lançamento nos cinemas em vários países do mundo. As cenas de nudez, violência e lesbianismo que haviam sido limadas pela ABC foram novamente incluídas. (No Brasil, não chegou a ser lançado nos cinemas.)


O filme estreou na TV americana com uma versão editada, mas foi lançado no exterior sem cortes, com bastante êxito, especialmente na China. O sucesso foi tão substancial que Deborah Raffin, uma das protagonistas, se tornou a embaixadora não oficial de Hollywood na China. Por mais improvável que pareça, é curioso notar a força que um simples telefilme adquiriu. A atriz organizou encontros entre figurões de Hollywood e líderes e cineastas chineses para distribuir filmes chineses nos EUA e filmes americanos na China. Acredite se quiser: foi Pesadelo do Acaso que inspirou os chineses a fazerem mais acordos com Hollywood. Além disso, Raffin ainda foi indicada ao Emmy por sua atuação no filme.

Chuck Connors

Tina Louise

Della Reese (à esquerda)

O elenco é irrepreensível: tanto Deborah Raffin quanto Lynne Moody estão muito bem nos papéis principais. Chuck Connors funciona como vilão em qualquer filme, apesar da canastrice. Tina Louise, sempre versátil, era presença obrigatória em tudo quanto era telefilme nos anos 1970. Della Reese, outra gigante da TV americana e dos telefilmes, rouba a cena como Sarah, uma das prisioneiras no filme. Para quem não está ligando o nome à pessoa, Della era um dos anjos da série O toque de um anjo (Touched by an Angel, 1994-2003).

Pesadelo do Acaso estreou nos EUA em 5 de novembro 1976, pela ABC. Foi um dos telefilmes de maior audiência no país em 1976 (obteve 25.3 pontos, muito acima da média da época). Mas levou dez anos para estrear aqui, na Rede Globo, em 1º de fevereiro de 1986. Paulo Perdigão, na coluna Filmes da Semana, da Revista da Tevê (jornal O Globo), escreveu: 

Segundo o roteirista Joe Heims, embora pareça incrível, a trama desse telefilme inspira-se em ocorrências verídicas, "porque em muitas comunidades americanas a justiça nada mais é que uma armadilha a serviço da humilhação, do terror e da corrupção". (Revista da Tevê - O Globo, 26 de janeiro de 1986)

Dirigido pelo prolífico John Llewellyn Moxey — de quem, como grande apreciador de telefilmes, sou fã — o filme tem o mérito de captar, de imediato, a expectativa e os nervos do telespectador, mantendo a tensão ao longo de toda a narrativa. 

Na década de 1980, o filme foi lançado também em VHS em vários países, mas no Brasil não. Na versão em DVD, lançada em 2019, o Brasil ficou novamente de fora.