26 março 2021

Um Certo Verão (That Certain Summer, 1972)

Telefilmesquecidos #36

Doug (Hal Holbrook), na casa dos 40 anos e recém divorciado de Janet (Hope Lange), reconstrói sua vida em outra cidade. O filho Nick (Scott Jacoby), de 14 anos, apesar de não entender por que seus pais se separaram, tem uma boa relação com ambos. Ao passar as férias de verão com o pai, no entanto, o garoto se depara com uma nova situação: a presença de Gary (Martin Sheen), amigo de seu pai. 

Inicialmente, Doug tenta manter seu relacionamento com Gary escondido, mas Nick percebe que há algo "diferente" acontecendo ali. De forma inesperada, acaba descobrindo a verdade sobre a relação de seu pai com Gary: eles não são apenas amigos. Inconformado e confuso, o garoto foge. A mãe, Janet, vai até a casa do ex-marido para saber do paradeiro do filho e tirar satisfações. Sem ter mais como manter seu relacionamento com Gary encoberto, Doug vê-se obrigado a encarar o problema de frente, diante do filho, e a confrontar-se com seus temores e inseguranças.

Hal Holbrook, Scott Jacoby e Martin Sheen

Dirigido por Lamont Johnson e escrito por Richard Levinson e William Link, Um Certo Verão é um marco da televisão americana. O telefilme tornou-se muito importante por ter sido pioneiro, apesar de praticamente esquecido hoje em dia. Foi o primeiro filme para a TV a abordar a homossexualidade de forma sensível e com seriedade. Mas o filme não é "sobre" a homossexualidade. É sobre relacionamentos pessoais sendo afetados pelo fato de existir a homossexualidade.

Um Certo Verão é tocante e impressiona pela naturalidade com que trata a delicada questão, na época um tremendo tabu. O caminho foi traçado e aberto graças ao popular ABC Movie of the Week, sessão de filmes exclusivos que eram produzidos para a TV e apresentados semanalmente no popular canal americano ABC. Mas não espere beijos, carícias ou cenas que sequer insinuem sexo entre homens. Além de ser um assunto bastante controverso naquela época (o que, por si só, já exigia comedimento) trata-se de um filme para a TV.



Hal Holbrook e Martin Sheen, atores que, desde jovens, conquistaram respeito e reconhecimento tanto da crítica quanto do público, eram relativamente novos em Hollywood no começo da década de 1970. Foram, previsivelmente, desaconselhados a interpretarem personagens gays. Depois de recusar o papel, Holbrook pensou melhor, resolveu encarar o desafio e aceitou, após identificar-se, em muitos aspectos, com o papel que interpretaria. O ator, que na época havia se divorciado há pouco tempo, vivia suas próprias lutas pessoais. Mesmo hoje, o filme continua importante para ele porque significou muito para várias pessoas. "Essa é uma boa razão para ser um ator", ele disse, "quando você pode fazer algo decente que toca o coração e a mente das pessoas, então você sente que realizou algo, de fato."

Em uma entrevista de 2007 para o The Dallas Voice, o colega Martin Sheen relembrou o sucesso do filme e discutiu o processo de pensamento por trás de sua aceitação do papel de Gary: "Achei maravilhoso. Era sobre duas pessoas que se amavam e não podiam ter um relacionamento que envolvesse sua sexualidade. Eu tinha roubado bancos, sequestrado crianças, estuprado mulheres e assassinado pessoas em vários filmes. Agora eu ia interpretar um cara gay e isso era considerado o fim da minha carreira. Pelo amor de Deus! Em que tipo de cultura vivemos?”


A maioria das exibições de pré-transmissão de um telefilme era normalmente assistida por um ou dois críticos. Algumas, quando eram produções maiores, por exemplo, chegavam a atrair meia dúzia de interessados. Para Um Certo Verão, foi necessária uma semana inteira de exibições, agendadas tanto na ABC quanto na Universal Television (que produziu o filme). A maioria dessas pré-transmissões teve um grande público. Em termos de televisão, foi um verdadeiro evento.

Em 1º de novembro de 1972, Um Certo Verão foi ao ar se tornou o primeiro filme para a televisão a abordar — por meio de um retrato simpático e compreensivo — a homossexualidade. Detalhe: na época, a homossexualidade ainda era considerada doença. No ano seguinte, em 1973, deixou de ser classificada como tal pela Associação Americana de Psiquiatria. Em 1975, a Associação Americana de Psicologia adotou o mesmo procedimento, deixando de considerar a homossexualidade como uma doença.

Aqui no Brasil, em 1985, o Conselho Federal de Psicologia deixou de considerar a homossexualidade como um desvio sexual e, em 1999, declarou que "a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão". Mas foi só em 1990 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).

Na época da exibição original de Um Certo Verão na TV americana, Marilyn Beck, do New York Times, chamou o filme de "um dos melhores dramas que você verá este ano na tela grande ou pequena." Judith Crist, da revista New York, descreveu-o como "um passo gigante para a televisão". O TV Guide declarou que "a televisão cresce" e, em sua crítica no Los Angeles Times, Charles Champlin atestou: "É o melhor filme para a TV que eu já vi... digno de ser exibido em telas de qualquer tamanho". J. O'Connor, na edição de 29 de outubro de 1972 do New York Times, analisou: "Obviamente, Um Certo Verão não é um sucesso só porque lida com o tema da homossexualidade. Assuntos 'polêmicos' são tão capazes de estimular a produção de porcarias quanto assuntos 'seguros'. Os envolvidos na produção de Um Certo Verão estavam bem cientes de que o caminho era evitar a polêmica. Para isso, foi preciso dedicar muito tempo, cuidado pensado e inteligente e maturidade ao projeto. Essa é a fórmula secreta para melhorar toda a televisão, em qualquer nível, em qualquer assunto."


O filme obteve vários prêmios e indicações para a TV. Ganhou o Globo de Ouro de Melhor Filme Feito para a TV. Scott Jacoby ganhou um prêmio Emmy de Melhor Desempenho por um Ator em um Papel Coadjuvante. O diretor Lamont Johnson ganhou o prêmio do Directors Guild of America por Melhor Realização em Filmes para a Televisão. O elenco não poderia ter sido mais acertado. Tanto Hal Holbrook quanto Martin Sheen estão irrepreensíveis e totalmente naturais nos papéis. O menino Scott Jacoby, sempre excelente, equipara-se a seus colegas de cena no que diz respeito ao talento e espontaneidade, assim como os coadjuvantes Hope Lange e Joe Don Baker.

No Brasil, o histórico do filme foi complicado e sua transmissão adiada diversas vezes. Só foi exibido na televisão brasileira em 1984 (mais de dez anos depois da exibição original nos EUA!) e, mesmo assim, com muitos percalços. Dá para se ter uma noção com a extensa matéria do jornalista Antonio Gonçalves Filho, no caderno Ilustrada, publicada na Folha de S. Paulo em 31 de janeiro de 1984. Alguns trechos explicam:

Chegou ao Brasil com uma das mais expressivas cartas de recomendação já dedicadas a uma obra feita para a TV (Prêmio Emmy de 1972 e uma audiência de 15 milhões de telespectadores quando foi lançado, nesse mesmo ano, nos Estados Unidos, pela ABC Television).

O fato é que "Um Certo Verão" já rolou por todas as emissoras de televisão deste País e jamais chegou a ser exibido. Só na Bandeirantes ele foi programado — no período 77/78 — por três vezes e, misteriosamente, substituído na última hora por outro telefilme qualquer. Adquirido recentemente pela Rede Manchete, deveria ter sido exibido no último sábado, às 23h20, mas foi expurgado do vídeo para dar lugar a uma comédia inconsequente produzida por Hollywood em 1957, "Não Caia N'Água Marujo" (...). O que acontece, afinal?

O programador de filmes da Rede Manchete, Wilson Cunha, confere ao episódio pouca importância. Diz tratar-se de um fato rotineiro, o da substituição de filmes, explicando que "Um Certo Verão" não foi exibido por causa da transmissão do jogo Flamengo x Palmeiras (o primeiro da Copa Brasil 84, às 21h15, em rede nacional). "Foi uma decisão interna, que nada teve a ver com Censura. Apenas resolvemos exibir o filme em outra ocasião, porque ele esta liberado apenas para depois das 23 horas".

A matéria ainda esclarece que o filme havia sido proibido no Brasil há quase 10 anos, pelo Serviço de Censura Federal, para ser exibido nos cinemas: "Um Certo Verão foi novamente apresentado à apreciação dos censores por volta de 1976, conseguindo os distribuidores a sua liberação para a TV. Teve início a saga do filme. O que haveria de tão incômodo numa obra feita especialmente para a televisão e, portanto, sujeita às limitações da mídia uniformizadora?"

Em outro trecho, o jornalista argumenta:

Johnson [diretor do filme] não faz apologia da emoção homófila, apenas luta para destruir estereótipos: Sheen e seu amante são homens comuns, que pagam impostos, comem pipoca e não usam meias de nylon com liga. Isso incomodou centenas de famílias norte-americanas, que se deram ao trabalho de escrever cartas à ABC protestando contra o "excesso" de normalidade dos dois personagens centrais do telefilme. Estranhavam que fossem "normais demais". (...)

Deveria ter sido essa, provavelmente, também a expectativa das forças ocultas de Brasília, que tentaram boicotar, por diversas vezes, a exibição do filme em outras emissoras (em particular, na Bandeirantes). Não se sabe, apenas, se essas "forças" continuam atuantes, a ponto de destinar o filme ao limbo televisivo. A Manchete garante que não. (...) Parece compreensivel que num pais onde a homossexualidade é considerada "doença" (ver codigo do Inamps) tal boicote ainda aconteça. 

De fato, naquela vez, a programação não foi alterada e finalmente Um Certo Verão foi ao ar no Brasil, pela primeira vez, pela Rede Manchete, em 18 de fevereiro de 1984. Cinco anos depois, em 9 de dezembro de 1989, a Manchete o reprisou. Curiosamente, menos de um mês depois, o filme foi parar na Globo e a emissora o exibiu no Corujão II, em 2 de fevereiro de 1990. 


O escritor e roteirista Burton Wohl fez uma adaptação do filme em livro, publicado pela Bantam Books em 1973. "O comovente romance sobre um menino que descobre que seu pai é homossexual — baseado no drama de TV mais importante e aclamado em anos!", como atestou o site Goodreads.


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Agradecimento: Lufe Steffen, do canal Naftalufe.

18 março 2021

Apenas Uma Velha e Doce Canção (Just an Old Sweet Song, 1976)

Telefilmesquecidos #35

Devido a problemas de saúde da avó, uma família negra decide fazer uma visita à velha senhora, que mora em uma pequena cidade do Sul dos EUA. O casal Nate (Robert Hooks) e Priscilla (Cicely Tyson) viaja com os três filhos para passarem duas semanas com a avó, mãe de Priscilla.

A família reluta em visitar o Sul, amargurados por velhas lembranças e preconceitos arraigados. Embora hesitantes, Priscila os convence a saírem de Detroit, onde moram, por alguns dias. A visita acaba mudando a vida de todos. A pequena cidade onde Priscilla nasceu fortalece os laços familiares que estavam começando a se desgastar. Embora unidos e amorosos, havia indícios de problema com o filho mais velho, que estava sendo influenciado por más companhias. 

Com a convivência em uma cidade pequena, na casa da avó doente, e em condições diferentes das vividas no centro urbano onde moravam, conflitos, anseios e divergências afloram. A família começa, então, a ter uma visão diferente do lugar, enquanto passa por risos e lágrimas, separação e reconciliação. 



O telefilme foi originalmente planejado para ser o piloto de uma série da MTM (produtora independente fundada em 1969 por Mary Tyler Moore e seu então marido Grant Tinker). Kinfolk (que pode ser traduzido como "parentes") seria o nome da série. Apesar dos rumores de que a série estava em produção, nenhuma das redes se interessou em comprar o programa. A CBS seria a opção mais lógica, por ser parceira da MTM, mas o projeto acabou sendo engavetado.

O arco dramático de Apenas Uma Velha e Doce Canção tinha tudo para render uma série que seria uma espécie de equivalente negro de Os Waltons. A ideia era apoiada até pelo autor, Melvin Van Peebles, que na época chegou a discutir uma sequência da produção. O romance Just an Old Sweet Song, publicado por Van Peebles em 1976, foi então adaptado por ele mesmo para a TV como um especial. 


Elementos que provavelmente seriam entendidos por um público específico ou mais sofisticado tiveram que ser mais claramente definidos para o público de massa. Foi ao ar originalmente como parte de uma série de especiais do General Electric Theatre.

A escolha do casal de protagonistas — Robert Hooks e Cicely Tyson (falecida no último dia 28 de janeiro, aos 96 anos) — não poderia ter sido mais acertada. Tanto Hooks quanto Tyson foram extremamente importantes e emblemáticos para toda uma geração de atores e atrizes negros nos EUA, nas décadas de 1960 e 1970. Apesar de seus nomes não serem tão conhecidos aqui no Brasil, com certeza seus rostos são familiares.

Robert Hooks é conhecido pelos mais de 100 papéis no cinema, na televisão e no teatro. Junto com Douglas Turner Ward e Gerald S. Krone, fundou, em 1967, a companhia de teatro The Negro Ensemble Company, responsável pelo lançamento das carreiras de vários artistas negros de diversos campos das artes. 

Atuante na valorização da comunidade negra nas artes dramáticas, Cicely Tyson (que foi casada com o trompetista e compositor de jazz Miles Davis) lutou contra estereótipos em filmes e séries. Em 1972, foi indicada ao Oscar de melhor atriz graças à sua performance no drama Lágrimas de Esperança (Sounder). Em mais de 70 anos de atuação, foram 11 Emmys e um Oscar pelo conjunto da obra.

Cicely Tyson e Robert Hooks 

Apenas Uma Velha e Doce Canção estreou na TV americana em 14  de setembro de 1976, pela CBS. No Brasil, foi ao ar pela primeira vez em 17 de julho de 1978, na Globo. Nos anos 1980, foi reprisado pela Manchete.