28 outubro 2023

Paixão Doentia (Something About Amelia, 1984)

Telefimesquecidos #63

Os Bennet são a típica família americana de classe média. O casamento não é exatamente feliz, mas sobrevive. Steven (Ted Danson) é um respeitável chefe de família, marido de Gail (Glenn Close) e pai atencioso da adolescente Amelia (Roxana Zal), de 13 anos, e Beth (Melissa Francis), de 11. 

Mas a mãe não consegue entender por que Amelia tem andado deprimida e retraída. O pai, por sua vez, mostra-se excessivamente protetor com Amelia e até ressentido quando a menina dá os primeiros sinais de querer viver coisas comuns da adolescência.


Quando as notas de Amelia, que sempre foi boa aluna, começam a cair, a orientadora da escola suspeita que algo está errado. Ela traz Amelia à sua sala e, durante a conversa, a menina acaba se abrindo. 


Amelia admitiu a origem de sua depressão: seu pai vem mantendo relações sexuais com ela, de tempos em tempos. Ao ficar sabendo, a mãe passa pela esperada raiva inicial e subsequente negação. Até constatar que, infelizmente, é tudo verdade.

O pai é aconselhado pelo serviço social a sair de casa. Do contrário, o juizado poderia levar as meninas. Amelia e a irmã ficam com a mãe. O pai vai morar em um hotel. Após algum tempo negando os fatos, ele é pressionado a admitir toda a verdade. Só assim a família terá uma chance de se tratar e se reestruturar. (Será?)


O filme jamais seria feito nos dias de hoje. O tema, extremamente sensível, não chegaria nem a ser cogitado. Mas vale lembrar: trata-se de um telefilme de 40 anos atrás. A maneira de se lidar com o abuso sexual (e de encará-lo) era bastante diferente. 

O filme – reflexo da época em que foi feito – não trata o incesto como abuso diretamente, e sim como algo extremamente errado e condenável, mas que pode ser “consertado”. Isso dá uma pista de por que esse tipo de crime normalmente não era denunciado e levava a vítima a se achar “culpada”.

O roteirista William Hanley não apresenta o personagem de Ted Danson como um monstro, apesar da monstruosidade de seu comportamento. O que o telefilme busca mostrar é que o incesto não é exclusividade de pais violentos ou de famílias pobres e com baixa escolaridade.

Como relata a matéria O incesto em debate nos EUA, publicada na Folha de S. Paulo de 13 de janeiro de 1984 (quatro dias após a primeira exibição do filme na TV americana), “é um filme incômodo, pois o enfoque contraria a crença generalizada de que o incesto é praticado por alcoólatras e entre pessoas de baixo nível econômico.”

Não era muito comum que um jornal de grande circulação no Brasil como a Folha dedicasse espaço para comentar um telefilme americano que acabara de estrear nos EUA. Detalhe: ainda não havia nem a menor previsão de estrear na TV brasileira. Mas o tema foi tão ousado que a discussão veio parar aqui:


"Acompanhado por 60 milhões de pessoas, [o filme] tem provocado grande polêmica nos Estados Unidos. O motivo é simples: o tema — tabu intocável até há pouco tempo — vem sendo debatido há meses no país, bastante dividido a respeito, já que segundo estatísticas realizadas, calcula-se que entre dois e 15 milhões de mulheres tiveram relações incestuosas em sua juventude." (Folha de S. Paulo, 13 de janeiro de 1984)


A narrativa é conduzida com seriedade, mas a maneira como foi abordada não se sustentaria na sociedade atual. Apesar do desconforto, hoje, ao ver a complacência com que tudo foi tratado na história, o filme tem o mérito de não cair na armadilha fácil do sensacionalismo.

Para o público de hoje, o roteiro seria inaceitável, mas o elenco de primeira categoria contribuiu para o sucesso do filme, à época. Ted Danson estava no auge com o seriado Cheers (1982-1993). Vê-lo no papel do pai abusador em Paixão Doentia forma um contraste brutal com Cheers, em que tanto seu personagem quanto o programa eram extremamente populares e queridos.

Glenn Close ainda não era conhecida mundialmente, mas já era uma atriz de primeira linha. Pouco tempo depois, com o sucesso de Atração Fatal (Fatal Attraction, 1987), tornou-se uma das maiores atrizes de sua geração.

Roxana Zal era um rosto conhecido na TV americana da década de 1980. A atriz começou cedo, aos 12 anos, e participou de vários seriados e telefilmes. Entre eles, o conhecido O Resgate de Jessica (Everybody's Baby: The Rescue of Jessica McClure, 1989)

Olivia Cole, sempre ótima, também faz uma participação pequena como a assistente social.

Telefilme de estreia da diretora Randa Haines, que já havia dirigido episódios de seriados de TV e casos especiais. Haines se tornaria conhecida dois anos depois, com Filhos do Silêncio (Children of a Lesser God, 1986), filme que recebeu cinco indicações ao Oscar e foi sucesso de público e de crítica.

Paixão Doentia recebeu oito indicações ao Emmy em 1984 e venceu em três categorias, Melhor Drama/Comédia Especial (Leonard Goldberg / Michele Rappaport), Melhor Atriz Coadjuvante (Roxana Zal) e Melhor Roteiro (William Hanley).

O filme também foi indicado a quatro Globos de Ouro e ganhou dois, de Melhor Minissérie ou Filme para Televisão e de Melhor Performance de Ator em Filme Feito para Televisão (Ted Danson).

Anúncio de estreia do filme na ABC (jornal New York Times, 9 janeiro 1984)

Estreou na TV americana em 9 de janeiro de 1984, na ABC. Foi o programa de televisão mais assistido nos Estados Unidos na semana de 9 a 15 de janeiro de 1984.

Mas levou uns bons anos até chegar aqui. A estreia na TV brasileira foi em 21 de fevereiro de 1990, na Bandeirantes. O título brasileiro, no entanto, não tem nem de longe a sutileza do original.

Jornal do Brasil, 21 de fevereiro de 1990

Paixão Doentia marcou época nos EUA. Curiosamente, suas oito indicações ao Emmy (três vitórias) e quatro indicações ao Globo de Ouro (duas vitórias) foram esquecidas há muito tempo, assim como o próprio telefilme.

11 outubro 2023

Exortação (Black Noon, 1971)

Telefilmesquecidos #62

No século XIX, o pastor John Keyes (Roy Thinnes) e sua esposa Lorna (Lynn Loring) se perdem no deserto. Quase à beira da morte, são socorridos por um trio de moradores de uma cidadezinha próxima: o prefeito Caleb Hobbs (Ray Milland), sua filha Deliverance (Yvette Mimieux), uma garota muda e gentil, e o agregado Joseph (Hank Worden). 

A tal cidadezinha, no entanto, parece ter sido atingida por uma onda de azar. O pastor anterior morreu quando a igreja pegou fogo, a mina de carvão que era a fonte de sustento da cidade foi esvaziada e, para piorar, os moradores são explorados e aterrorizados por um pistoleiro cruel e misterioso (Henry Silva).

Embora o pastor Keyes já tivesse se comprometido a viajar para outra comunidade, acaba sendo persuadido a permanecer na cidade pelo tempo suficiente para fazer o sermão na nova igreja que está sendo construída.


Um dia, durante o sermão, o pastor cura milagrosamente um garoto aleijado e descobre que sua presença trouxe uma maré de sorte para a cidade. Keyes e a esposa Lorna continuam na casa do simpático prefeito Caleb. Lorna, de cama e ainda enfraquecida pelos dias no deserto, tenta se recuperar.


Keyes passa a ter pesadelos horríveis, nos quais é perseguido por um homem coberto de queimaduras e cai nos braços de Deliverance. Lorna também é atormentada por pesadelos, mas não consegue se recuperar o suficiente nem para sair da cama. 

Por que a esposa do pastor continua misteriosamente doente? Quem é o homem estranho que ele vê em seus pesadelos? E o que a enigmática e muda filha do prefeito tem a ver com tudo isso?



À medida que os estranhos pressentimentos passam a se acumular, o pastor começa a desconfiar que a cidade não é o que ele pensava. Ele e a esposa precisam dar o fora dali.

Raríssima incursão de um telefilme na seara do faroeste (ainda que aqui o “velho oeste” sirva apenas de cenário). O gênero, tão popular na década de 1960, não encontrou terreno fértil nas produções para a TV dos anos 1970.



No início daquela década, com a popularização da psicodelia na cultura de massa, os telefilmes traziam histórias com temáticas espirituais, sobrenaturais e esotéricas, muitas delas lidando com efeitos profundos sobre o consciente, alucinações, bruxaria e coisas afins. O faroeste já parecia algo datado.

Roy Thinnes está decente como protagonista, mas Ray Milland não tem muito com o que trabalhar neste telefilme megaobscuro e esquecido (mas bem interessante e com bom elenco).

Thinnes era popular na TV americana e trabalhou em inúmeros seriados e telefilmes dos anos 1960 até os 2000. Só em 1973, esteve em quatro filmes para a TV:  A Prova (The Norliss Tapes, 1973), Escola de Meninas (Satan's School for Girls, 1973), Horror nas Alturas (The Horror at 37,000 Feet, 1973) e Corrida da Morte (Death Race, 1973).

Ray Milland

O veterano Milland, prolífico protagonista de filmes das décadas de 1930 e 1940 — levou o Oscar por Farrapo Humano (The Lost Weekend) em 1945 — tinha acabado de aparecer no grande sucesso Love Story (1970) quando Exortação estreou na TV americana. A partir dos anos 1970, passou a equilibrar papéis ocasionais no cinema com vários trabalhos na TV.

Yvette Mimieux

Yvette Mimieux já era um rostinho bonito nos anos 1960, ainda mocinha, e participou de vários filmes. A partir da década de 1970, encontrou nos telefilmes um formato no qual se deu bem, participando de vários.

Assim como Ray Milland, Gloria Grahame também fez parte da era de ouro de Hollywood e participou de clássicos como A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life, 1946) e Assim Estava Escrito (The Bad and the Beautiful, 1952, que lhe rendeu um Oscar). 

Gloria Grahame e Roy Thinnes

Leif Garrett

O elenco também inclui Leif Garrett ainda criança. Poucos anos depois ele se tornaria cantor e ídolo teen dos anos 1970.

O traquejado diretor de TV Bernard L. Kowalski consegue fazer o roteiro — ao estilo do seriado Além da Imaginação (Twilight Zone) — funcionar, apesar do orçamento quase inexistente deste telefilme. Aliás, Kowalski dirigiu toneladas de episódios de diversos seriados de TV ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980. Era experiente no gênero horror, tendo em seu currículo Night of the Blood Beast (1958), O Ataque dos Sanguessugas Gigantes (Attack of the Giant Leeches, 1959) e O Homem-Cobra (Sssssss, 1973), só para citar alguns. 

Lynn Loring

O público impaciente de hoje pode achar o filme um pouco lento, mas o objetivo foi criar uma atmosfera implícita de terror iminente com um orçamento mínimo.

O título em português não poderia ter sido mais infeliz. Exortação (que significa  advertência, aviso, conselho) é uma palavra raramente usada e pouco (ou nada) conhecida do grande público. Logo, o nome em português perdeu completamente o apelo do original Black Noon (“meio-dia preto”). 

Curiosamente, sites como Filmow e imdb (versão em português) listam o filme com o título "Meio-dia Preto", mas ele não foi exibido em nossas tevês com esse nome.

A estreia na TV americana foi em 5 de novembro de 1971, na CBS. No Brasil, foi exibido pela primeira vez em 15 de dezembro de 1972, na TV Tupi. Depois chegou a ser exibido na TV Guanabara e, no começo dos anos 1980, reprisado algumas vezes na Bandeirantes.

O filme está listado no guia Os Filmes de Hoje na TV (1975), de Rubens Ewald Filho. Uma das únicas e raras referências em português ao filme.

Quarenta e cinco anos depois, Andrew Fenady transformou seu roteiro de Black Noon em um romance, lançado em 2016 nos EUA, pela editora Thorndike Press.