04 dezembro 2020

Pesadelo do Acaso (Nightmare in Badham County, 1976)

Telefilmesquecidos #28

Duas universitárias em viagem de férias, Cathy (Deborah Raffin), branca, e Diane (Lynne Moody), negra, têm um contratempo quando o pneu  do carro em que viajam fura, nos arredores do vilarejo de Badham. O xerife Danen (Chuck Connors), que passava pelo local, para e ajuda as duas. Mas não consegue esconder sua perturbação por ver uma garota branca e outra negra viajando juntas. Não demora muito para se mostrar um sujeito cínico, racista e violento.

Cathy e Diane reagem às grosserias do xerife e ele rapidamente arma um esquema para se vingar das duas: combina com o mecânico do posto de gasolina, que inventa um defeito no carro para que as moças não possam partir. Obrigadas a esperar, as duas resolvem passar a noite em um terreno baldio. É a desculpa para o xerife detê-las sob acusação de dormirem em área proibida.




Após um rápido julgamento encenado, o juiz corrupto (vivido pelo veterano Ralph Bellamy), mancomunado com o xerife, manda as duas jovens para uma fazenda-presídio de mulheres, onde deverão cumprir sua sentença. Começa, então, o ordálio de Cathy e Diane.


Não há guardas. A tal prisão rural é chefiada por "encarregadas de confiança" brutais, sádicas, intimidadoras e armadas. As presas brancas são separadas das negras. Para piorar, o superintendente Deaner (Robert Reed) é um degenerado sexual em pele de cordeiro.

As duas amigas descobrem, da pior maneira, que estão à mercê de um "sistema" de justiça ultrajante, que serve para dar suporte a fazendeiros locais com mão de obra escrava. Toda a região do condado de Badham tem suas regras e regulamentos próprios, e aqueles que questionam sua legitimidade acabam mortos. Cathy e Diane percebem que as encarregadas da prisão usam as internas também para outros fins, em uma espécie de escravidão sexual paralela. 



A sentença de um mês é prorrogada indefinidamente, a menos que elas se submetam aos desejos do superintendente. Não parece haver saída. Incomunicáveis, elas sabem que as probabilidades de conseguirem fugir e denunciar o regime corrupto são quase nulas. Já haviam sido advertidas de que nenhum morador branco da cidade ajudaria uma mulher negra e nenhum cidadão negro poderia se dar ao luxo de fazê-lo. A única chance seria, de fato, arriscar as próprias vidas e fugir.

O filme mostra as condições humilhantes das prisioneiras, mantidas trabalhando em condições análogas à escravidão. Isso em plena década de 1970. Há conflitos internos cruéis entre as presas, razão pela qual as duas protagonistas da história são interpretadas por uma atriz branca e outra negra. As tensões na fazenda-prisão são ainda mais exacerbadas pela segregação das detentas. Embora tanto as prisioneiras brancas quanto as negras sejam tratadas como mão de obra escrava, são as negras que recebem as tarefas mais servis.

A mensagem de fundo, sobre a denúncia da exploração comercial de prisioneiros, vem junto com outra mensagem, mais incisiva, sobre o racismo institucionalizado, ou qualquer tipo de racismo. Foi o que o canal ABC (American Broadcasting Company) arquitetou, antes de estrear seu telefilme. A princípio, seria mais um filme exploitation sobre moças na prisão. (Exploitation é um gênero de filmes que mostra, de forma sensacionalista, apelativa e algumas vezes até mórbida a temática que se propõe a tratar. Existem vários subgêneros desse tipo de filme. Mulheres na prisão é um desses subgêneros.)

Cortaram as "baixarias" típicas desse tipo de produção (cenas de sadomasoquismo, mulheres nuas ou seminuas se engalfinhando, ou sendo chicoteadas por outras mulheres, abusadas, agredidas etc.) e acrescentaram um aviso antes da abertura: "O filme a seguir foi inspirado por condições reais de certas partes do país. Esta história é uma ficção baseada nessas condições."


Tudo que a ABC precisava era de uma versão suavizada do filme, para exibição na TV — razão pela qual, espertamente, solicitou os cortes e ajustes. Mas o longa não foi produzido com a intenção de ser lançado nos circuitos de cinema. A ideia só veio depois. Até então, os únicos telefilmes com esse mérito eram os aclamados Encurralado (Duel), de Steven Spielberg, e Glória e Derrota (Brian’s Song), de Buzz Kulik, ambos de 1971 e exibidos na tevê americana em novembro daquele ano.

Trocando em miúdos, Pesadelo do Acaso foi inicialmente concebido como filme exploitation, do tipo que era exibido em cinemas drive-in nos EUA. Mas a ABC percebeu que ele tinha potencial para o horário nobre da TV, contanto que fosse remodelado como um "telefilme sério" e politicamente engajado. Mais tarde, depois da estreia na TV, o filme ganhou cenas adicionais para apimentar o lançamento nos cinemas em vários países do mundo. As cenas de nudez, violência e lesbianismo que haviam sido limadas pela ABC foram novamente incluídas. (No Brasil, não chegou a ser lançado nos cinemas.)


O filme estreou na TV americana com uma versão editada, mas foi lançado no exterior sem cortes, com bastante êxito, especialmente na China. O sucesso foi tão substancial que Deborah Raffin, uma das protagonistas, se tornou a embaixadora não oficial de Hollywood na China. Por mais improvável que pareça, é curioso notar a força que um simples telefilme adquiriu. A atriz organizou encontros entre figurões de Hollywood e líderes e cineastas chineses para distribuir filmes chineses nos EUA e filmes americanos na China. Acredite se quiser: foi Pesadelo do Acaso que inspirou os chineses a fazerem mais acordos com Hollywood. Além disso, Raffin ainda foi indicada ao Emmy por sua atuação no filme.

Chuck Connors

Tina Louise

Della Reese (à esquerda)

O elenco é irrepreensível: tanto Deborah Raffin quanto Lynne Moody estão muito bem nos papéis principais. Chuck Connors funciona como vilão em qualquer filme, apesar da canastrice. Tina Louise, sempre versátil, era presença obrigatória em tudo quanto era telefilme nos anos 1970. Della Reese, outra gigante da TV americana e dos telefilmes, rouba a cena como Sarah, uma das prisioneiras no filme. Para quem não está ligando o nome à pessoa, Della era um dos anjos da série O toque de um anjo (Touched by an Angel, 1994-2003).

Pesadelo do Acaso estreou nos EUA em 5 de novembro 1976, pela ABC. Foi um dos telefilmes de maior audiência no país em 1976 (obteve 25.3 pontos, muito acima da média da época). Mas levou dez anos para estrear aqui, na Rede Globo, em 1º de fevereiro de 1986. Paulo Perdigão, na coluna Filmes da Semana, da Revista da Tevê (jornal O Globo), escreveu: 

Segundo o roteirista Joe Heims, embora pareça incrível, a trama desse telefilme inspira-se em ocorrências verídicas, "porque em muitas comunidades americanas a justiça nada mais é que uma armadilha a serviço da humilhação, do terror e da corrupção". (Revista da Tevê - O Globo, 26 de janeiro de 1986)

Dirigido pelo prolífico John Llewellyn Moxey — de quem, como grande apreciador de telefilmes, sou fã — o filme tem o mérito de captar, de imediato, a expectativa e os nervos do telespectador, mantendo a tensão ao longo de toda a narrativa. 

Na década de 1980, o filme foi lançado também em VHS em vários países, mas no Brasil não. Na versão em DVD, lançada em 2019, o Brasil ficou novamente de fora.


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