21 abril 2021

Cinco clássicos que demoraram a chegar na TV brasileira

Há alguns anos, fiz um post sobre a primeira exibição do filme Festim Diabólico (Rope, 1948) na TV brasileira. As gerações mais novas não fazem a menor ideia do que era esperar por um filme na TV aberta, nas décadas de 1980 e 1990. Primeiro esperávamos sair do cinema para, alguns anos depois, chegar às videolocadoras e, mais alguns anos depois, ser exibido pela nossa TV.

E quanto aos filmes muito antigos, aqueles ainda em preto e branco, dos anos 1940 e 1950, por exemplo? Lançados no cinema numa era pré-televisão, levaram décadas para serem exibidos nas tevês mundo afora (e mais ainda no Brasil). E quando isso acontecia, tornava-se sempre um evento, pois a TV era, então, o grande meio de comunicação. Escolhi cinco filmes que marcaram a história do cinema e que demoraram décadas para serem exibidos pela TV brasileira.

A ideia aqui não é falar sobre os filmes em si, mas sobre o acontecimento que foi sua exibição pela primeira vez na TV do Brasil. Até porque são filmes extremamente conhecidos e de fácil acesso hoje. Quem quiser se aprofundar neles, é só fazer uma pesquisa na internet. Há milhares de sites, blogs, podcasts, vídeos e tudo mais sobre esses filmes. Abaixo, os cinco clássicos que escolhi, seguindo a ordem cronologica da primeira exibição na televisão brasileira:


Psicose (Psycho, 1960)

Rede Globo, 13/12/1980


A CBS (Columbia Broadcasting System) planejava exibir Psicose em setembro de 1966 na televisão dos EUA. Após um trágico assassinato poucos dias antes da transmissão programada, a rede decidiu adiar a exibição do filme, embora insistisse que o levaria ao ar. Tanto que chegou a sair até nos guias de programação de TV da época. Mas, depois de muitos adiamentos, pressão dos canais afiliados (que não achavam a exibição do filme uma boa ideia) e questões com a censura, a CBS acabou não levando o filme ao ar. Só no ano seguinte é que a WABC-TV (Canal 7) na cidade de Nova York, transmitiu o filme pela primeira vez na TV americana, em 24 de junho de 1967. De acordo com o The New York Times, a famosa cena do chuveiro foi reduzida de 12 facadas para três.

"O maior sucesso comercial da carreira de Alfred Hitchcock (1899 - 1980)”, anunciou Paulo Perdigão em sua coluna de filmes da TV, no jornal O Globo, de 13 de dezembro de 1980. “Seu único ensaio genuinamente de horror (a partir da novela de Robert Bloch), rodado com modestos recursos de produção (800 mil dólares) e em ritmo acelerado de trabalho (para isso o cineasta mobilizou uma equipe treinada em TV)."

Um dos filmes mais icônicos não só do diretor Alfred Hitchcock, mas de toda a história do cinema, Psicose demorou 20 anos para chegar à televisão no Brasil. Foi na noite de sábado, 13 de dezembro de 1980 (Hitchcock havia morrido oito meses antes), que a Globo exibiu o filme pela primeira vez, na sessão Primeira Exibição. Reservada para filmes inéditos na TV brasileira, como o próprio nome diz, a sessão ocupava o lugar que depois ficaria permanentemente reservado ao Supercine. 

Naquela época, entretanto, tudo era mais cedo. A novela de então, Coração Alado, terminava às nove e vinte da noite. Psicose foi exibido logo após a novela. "Era o filme predileto de Alfred Hitchcock, conforme confessou a François Truffaut, em 1965, durante longa entrevista ao seu maior admirador na França", explicou Hugo Gomez no Jornal do Brasil de 13 de dezembro de 1980.


...E o Vento levou (Gone With The Wind, 1939)

 Rede Globo, 12/09/1983


Ao estrear, em 1939, ...E o Vento Levou fascinou o mundo todo. Como explicou Paulo Perdigão em O Globo de 12 de setembro de 1983: "O filme mais famoso e mais popular da história do cinema (rendeu o equivalente a 321 milhões de dólares e detém o recorde de audiência na TV americana: 47.7 pontos de rating)." 

"The big event" (o grande evento) da NBC, na 1ª exibição de E o Vento Levou na TV americana (1976)

Mas até chegar às telas das televisões do Brasil, foram 44 anos de espera. A Globo foi a responsável pelo feito, ao exibir o filme pela primeira vez em 12 de setembro de 1983, às nove e vinte da noite, logo após o capítulo da novela Louco Amor

Até um especial — A História de E o Vento Levou — foi exibido pela Globo, em 1983, às vésperas da estreia do longa na Globo. Com quase quatro horas de duração, o filme foi dividido em duas partes pela emissora, exibidas na segunda (12/09) e na terça (13/09), no mesmo horário, depois da novela das oito. Com toda a pompa, circunstância e recorde de audiência. Quando foi ao ar pela primeira vez na TV americana, pela rede NBC, em 7 e 8 de novembro de 1976, também foi o filme de maior audiência já registrada até então pela TV nos Estados Unidos. 

“Superprodução de David O. Selznick baseada no best-seller de Margaret Mitchell, uma turbulenta história de amor nos tempos da Guerra Civil americana. A saga de Scarlett O'Hara (Vivien Leigh) e seu encontro com o aventureiro Rhett Butler (Clark Gable)”, escreveu Paulo Perdigão em O Globo. “Foi, em sua época, a produção mais cara e mais longa do cinema (3 horas e 42 minutos), conquistou 8 Oscars (incluindo melhor filme, atriz, direção)”.


Seis anos depois da primeira exibição, a Globo, em comemoração aos 50 anos do filme, o exibiu novamente em 15 de dezembro de 1989, desta vez em um só dia, sem dividi-lo, na sessão Cinema Especial, às 21h40, logo após.o capítulo de Tieta. Regina Duarte fez a apresentação do filme. O SBT não deixou barato e apostou em outro inédito, com foco no público mais jovem: Purple Rain (1984), estrelado pelo cantor Prince e bastante alardeado pela emissora.


O Mágico De Oz (The Wizard of Oz, 1939)

Rede Globo - 29/12/1984


Em clima de réveillon, o Supercine do último sábado de 1984 trouxe nada menos que O Mágico de Oz, 45 anos depois de sua estreia no cinema. O filme foi ao ar às 21h25, logo depois da novela Corpo a Corpo, e tornou-se, na Globo, um dos clássicos de fim de ano, bastante reprisado perto do Natal ou do Ano Novo, nos anos subsequentes.

A mesma estratégia ja havia sido adotada pela CBS, quando o filme foi exibido na TV americana pela primeira vez, em 3 de novembro de 1956. Entusiasmada com os altos indices de audiência, a emissora decidiu tornar O Mágico de Oz uma atração anual, e passou a exibi-lo a partir de 1959, sempre no segundo domingo de dezembro, durante as três décadas seguintes.


"Quando, em agosto de 1939, estreou nos EUA O Mágico de Oz (The Wizard of Oz), o mundo, em dramático suspense, estava à beira da explosão da II Guerra Mundial”, publicou a Revista da TV, do jornal O Globo, de  23 de dezembro de 1984. “A encantadora fantasia era o escapismo necessário para serenar crianças de todas as idades. Na época a produção mais cara saída dos estúdios da Metro (três milhões de dólares), não ficou, porém, como mero sucesso de ocasião: por gerações e gerações, este filme fascinou multidões que nunca se cansaram de vê-lo e revê-lo (vendido em 1956 para a TV americana, é hoje o filme mais vezes transmitido, com 25 exibições, tendo chegado a obter 36.5 pontos de audiência)."


Casablanca (Casablanca, 1942)

Globo - 04/01/1988

A sessão Cineclube, que a Globo exibiu na primeira segunda-feira de 1988, às 23h55, trouxe para a TV brasileira Casablanca, 46 anos depois de sua estreia no cinema. “De Casablanca quase tudo já foi dito: era um filme rotineiro, produção tipo B que, graças àquelas magias cósmicas inexplicáveis (ligadas às qualidades intrínsecas do filme e de quem o fez) se transformou num clássico definitivo. (...)”, explicou Paulo Fortes n a edição de  4 de janeiro de 1988 do Jornal do Brasil. “Momento raro nas carreiras de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, é uma preciosidade que escapou às intempéries do tempo.”

“Revisto agora, mais de quatro décadas depois da estreia, Casablanca — hoje, 23h55m, canal 4, pela primeira vez na TV com legendas e som original — segue sendo, de fato, desses raros exemplos da mitologia cinematográfica em que o doce e muitas vezes ilusório incenso da legenda encontra efetivamente uma justificação real.” (Jornal do Brasil, 4 de janeiro de 1988)


Dez meses depois de exibi-lo pela primeira vez, a Globo apresentou, em 19 de novembro de 1988, uma versão colorizada de Casablanca. O presente para os fãs foi a atração do Supercine daquele sábado — com direito a apresentação de Silvio de Abreu — que foi ao ar às 21h35, logo após o capítulo de Vale Tudo. (O mordomo Eugênio deve ter se regozijado).


O Exorcista (The Exorcist, 1973)

SBT - 17/05/1989



Comparado aos quatro filmes anteriores desta seleção, O Exorcista até que não demorou muito para ser exibido na TV brasileira: “apenas” 16 anos. E, desta vez, quem teve o privilégio da estreia foi o SBT, que exibiu o filme, após grande alarde, em 17 de maio de 1989. (Nos EUA, havia sido exibido pela primeira vez na TV em 1980, pela CBS).


O Exorcista começou às 21h30, no Cinema em Casa, logo após a série V - Os Extraterrestres no Planeta Terra, às 20h15, e Tom e Jerry, às 21h20. (Silvio Santos tinha mania de exibir desenhos animados à noite, para preencher “buracos” na programação, enquanto vigiava o fim do capítulo da novela da Globo para iniciar sua atração. Só quando o capítulo de O Salvador da Pátria terminou é que O Exorcista começou no SBT). 

Foram muitas chamadas e anúncios bem à moda da emissora, com direito a locução dramática e assustadora: “Pode o demônio viver em nós? Como ele se manifesta? Com o que ele se parece? Todas as faces do terror num filme imprevisível. Você nunca sentirá tanto medo! Os horrores do sobrenatural no filme que deu origem à espantomania — O Exorcista. Um grande sucesso do cinema, finalmente liberado para a televisão. Breve, no seu Cinema em Casa.” 

O Exorcista parece, revisto hoje, o que sempre foi: um filme de terror médio que associa, com boas sacadas, conflitos sexuais com religião e ciência. (...)”, escreveu Régis Bonvicino em sua crítica publicada na Folha de S. Paulo de 17 de maio de 1989, na coluna Filmes da TV. “Na época em que foi lançado, O Exorcista causou, no entanto, impacto pelo fato de 'incorporar' o demônio numa menina de apenas 12 anos e de tratar o sagrado tema do exorcismo então relegado às produções B, de forma diferenciada, com muitos e eficazes efeitos especiais, que ajudaram a fazer o sucesso da fita junto ao público.” 

16 abril 2021

Todos Muito Estranhos (All the Kind Strangers, 1974)

Telefilmesquecidos #39

Jimmy Wheeler (Stacy Keach) é um fotojornalista viajando de carro, tranquilamente. Na estrada do Kentucky, ele passa por um garotinho que vinha andando na beira da pista. Vendo o esforço do garoto, que carrega mantimentos com certa dificuldade, Jimmy oferece uma carona ao simpático menino (Tim Parkinson), que se apresenta como Gilbert. O rancho onde o menino mora revela-se mais fora de mão do que Jimmy poderia pensar. À medida que a estrada avança mais e mais na floresta, começa uma chuva que vai só aumentando. 

Ao chegar ao local, Jimmy vê que a família do garotinho é composta apenas por seus seis irmãos e irmãs, que vivem no mais completo isolamento, dominados pelo mais velho, Peter (John Savage). Na verdade, os pais das crianças morreram há algum tempo e Peter, assumindo o comando, inventou um esquema de sequestro de adultos para desempenhar os papéis de mãe e pai (óbvio que isso não é dito, mas Jimmy, aos poucos, deduz). A criada, Carol Ann (Samantha Eggar), a quem os garotos chamam de "mãe", na verdade está ali contra sua vontade. Há um clima tenso no ar.


Tim Parkinson e Stacy Keach

As crianças logo cercam Jimmy e passam a tê-lo como uma figura paterna. Mas logo ele descobre que, antes dele, outros incautos haviam caído na arapuca. E aqueles que não eram adequados para os "papéis" sumiam misteriosamente, da noite para o dia. Para completar, uma fiel matilha de cães ferozes garantia que nenhum dos supostos pais fugiriam do rancho. 

O diretor Burt Kennedy faz um bom trabalho em gerar muito suspense e um clima sinistro logo no início, auxiliado por excelentes atuações de Stacy Keach canalizando a raiva, John Savage transparecendo perturbação convincente e Samantha Eggar personificando o terror. Robby Benson, ainda antes de se tornar um dos ídolos adolescentes dos anos 1970, interpreta um dos irmãos que, apesar da pouca idade, já dá sinais de um masoquismo perverso. (Benson também canta a piegas música-tema do filme, All The Kind Strangers). 

Robby Benson

Samantha Eggar


Se há uma palavra para descrever Todos Muito Estranhos, esta palavra é perturbador. Com um certo clima meio Colheita Maldita (Children of the Corn, 1984), Aldeia dos Amaldiçoados (Village of the Damned, 1960), e Todas as Noites às Nove (Our Mother's House, 1967), este telefilme consegue ser bastante assustador quando você descobre o que realmente está acontecendo. Mais uma vez, fica patente como lindas crianças podem ser mais assustadoras do que monstros propriamente ditos. Some-se a isso a fotografia vibrante da locação, um baita contraste com o clima sombrio da história. (Há alguns anos fiz um post sobre filmes de suspense/terror com crianças. Todos Muito Estranhos se encaixaria bem à lista).

John Savage



Como se trata de um filme feito para a TV, alguns subtextos, digamos, mais excêntricos do enredo não foram explorados. Se a história tivesse ganhado um pouco mais de espaço para respirar, em termos de duração e conteúdo mais ousado, Todos Muito Estranhos poderia ter sido um interessante filme de cinema. É contido, mas são justamente as coisas não vistas que tornam este filme assustador. Mesmo assim, termina de forma meio abrupta (74 minutos), deixando no telespectador uma curiosidade de ver como a história prosseguiria daquele ponto.



Todos Muito Estranhos foi ao ar nos EUA pela primeira vez em 12 de novembro de 1974, pela ABC. No Brasil, demorou um pouco para ser exibido: só estreou na Globo em 8 de abril de 1981, na sessão Première 81. Fernando Morgado, na coluna de filmes da TV, da Folha de S. Paulo, comentou sobre o telefilme: "O tema promete, mas há uma preocupação: até hoje, a Première 81 da Globo não exibiu um só filme de qualidade." (Na Première 81 a Globo exibia, às quartas-feiras, no horário nobre, filmes de longa-metragem, inéditos na TV brasileira).

O telefilme foi reprisado algumas vezes nas madrugadas da primeira metade dos anos 1980. Nas reprises posteriores, as colunas de filmes da TV comentaram: "Estranha história a partir deste drama de suspense feito para a televisão" (Folha, 26 de setembro de 1981). O Globo (1985) publicou: "Thriller feito para a TV, reciclando o tema de Todas as noites às nove", com Eggar em papel similar ao de O Colecionador".




09 abril 2021

O surdo-mudo (Dummy, 1979)

Telefilmesquecidos #38

"Esta é uma história verídica. A história de Donald Lang, um surdo-mudo analfabeto, pego no pesadelo de um julgamento criminal ímpar. Mas poderia ser a história de qualquer um de nós, se nos encontrássemos isolados em um mundo sem som ou linguagem". Assim o narrador da história nos dá uma ideia do que virá, já nos primeiros segundos da abertura de O surdo-mudo. O narrador é o ator Paul Sorvino, que interpreta o advogado Lowell Myers.


Em Chicago, o jovem Donald Lang, negro, 20 anos, surdo, analfabeto e criado nos guetos, é detido e acusado de ter assassinado uma prostituta. Impressionado com a situação sui generis de isolamento e solidão de Donald, além da falta de evidências concretas contra o jovem, Lowell assume o caso. Lowell também é surdo, mas é oralizado (sabe falar) e também sabe a Língua de Sinais Americana. A partir daí, o filme, por meio da narração em off do advogado, vai reconstituindo o passado do réu, desde sua infância até seu trabalho como carregador e descarregador de caminhões. 



Lowell conclui que Donald é inocente e vítima de uma infeliz conjunção de circunstâncias contra as quais achava-se impotente, por sua impossibilidade de se comunicar. O promotor tenta impedir o processo, considerando Donald incapaz, mas Lowell quer levar seu cliente ao tribunal, pois, se for considerado incapacitado, Donald passará o resto da vida atrás das grades, sem merecer um julgamento justo. O júri, porém, resolve internar Donald no Departamento de Saúde Mental para recuperar-se. 

LeVar Burton como Donald Lang

Paul Sorvino como Lowell Myers

Durante três anos, Lowell luta incansavelmente para obter o direito de julgamento para seu cliente, fazendo com que Donald seja alfabetizado e aprenda a língua de sinais. Apesar das tentativas e esforços, Donald não conseguiu progredir no aprendizado. Finalmente, cinco anos após o crime, o Supremo Tribunal de Illinois concede a Donald Lang acesso ao tribunal do júri. Nesse meio-tempo, o rapaz boa-praça e inocente que ele era converteu-se, após anos de confinamento e humilhação, em um adulto antissocial, revoltado e rancoroso. Afinal, ele é inocente ou culpado?


Excelente no papel de Donald Lang, LeVar Burton (o Kunta Kinte jovem da minissérie Raízes) prende a atenção do telespectador ao longo de todo o filme sem proferir uma única palavra. Algo que só um ator extremamente talentoso e carismático como ele poderia imprimir com veracidade, mesmo sendo jovem e com relativamente pouco tempo de experiência na profissão. Paul Sorvino no papel do advogado surdo também garante uma atuação acima da média.




O caso real de Donald Lang atraiu enorme atenção na época em que ocorreu nos EUA, em 1965, e se arrastou por vários anos. Em 1974, Ernest Tidyman, respeitado escritor e roteirista norte-americano, publicou a história de Donald Lang no romance-reportagem Dummy, com base nos fatos apurados do caso. Tidyman também escreveu o roteiro para o telefilme, baseado em seu livro. No Brasil, o livro foi lançado com o título O Condenado, pela Nova Época Editorial, também em 1974.


Ernest Tidyman transcreve a fala de Lowell Myers, na reta final do livro: “Senhoras e senhores do júri, este foi um caso longo e complicado, mas os senhores foram todos muito pacientes. Foi um dos casos mais incomuns jamais levados aos tribunais, e se vierem algum dia a fazer um filme deste caso, ninguém acreditaria. Pensariam que se tratava de ficção, inventada por alguém.”

A própria orelha do livro já instiga: “Donald Lang tinha vinte anos de idade, era pobre, negro, completamente analfabeto — e surdo e mudo. Não podia falar, escrever, ler lábios ou compreender mímica. Era um problema legal sem precedentes: Como poderia o acusado se defender se não podia sequer se comunicar? Atônita, a corte designou o único homem que seria capaz de defender o acusado — um advogado hábil, tenaz, determinado, chamado Lowell Myers. Myers também era surdo.”

Importante ressaltar que o termo “surdo-mudo”, embora ainda seja muito usado por leigos, está errado, é pejorativo e não deve ser utilizado. Como explica o site libras.com.br: “Não é correto dizer que todo surdo é surdo-mudo. A maioria dos surdos têm as cordas vocais em perfeito funcionamento”. O site guiaderodas.com complementa: “A surdez não acarreta nenhuma perda no aparelho fonador, e são mínimos os casos de pessoas com problemas auditivos que não emitem qualquer tipo de som.”  Ou seja, o termo certo é surdo e não surdo-mudo. O surdo é capaz de emitir som e de aprender a falar (embora não possa ouvir a própria voz).


O título original em inglês, Dummy, é hoje um termo igualmente rechaçado para se referir a pessoas surdas. Entre os diversos significados e conotações, o dicionário Merriam-Webster traz as seguintes definições para dummy: a. (datado, ofensivo): pessoa que é incapaz de falar; b. pessoa que é normalmente calada; c. pessoa estúpida, bobalhona. Em outro sentido, dummy também pode significar imitação ou cópia de algo usado como substituição, como um manequim ou boneco, por exemplo.

Chamar um surdo de mudo é depreciativo e ofensivo, mas na época em que o livro e o telefilme foram lançados (década de 1970) ainda era comum e aceitável. O blog Lee & Low explica: 

Hoje, os sinônimos de “dummy” incluem “cabeça de vento”, “estúpido” e “idiota”. Em circunstâncias convencionais, essas palavras não promovem sentimentos positivos para ninguém na sociedade, muito menos para aqueles que são surdos. Como resultado, a comunidade surda não usa mais a palavra “dummy”. Eles também adquiriram uma visão muito mais negativa dos termos “surdo-mudo” e “mudinho”, especialmente porque a maioria das pessoas surdas pode aprender a falar.

Na edição em português do livro, a denominação Dummy, como Donald Lang é chamado no original em inglês (ele era conhecido assim na vida real), foi traduzida como “Bobão”. O próprio autor justificou a escolha proposital da palavra dummy, em nota no livro:


Tanto o telefilme quanto o livro se encerram com a constatação do advogado Lowell Myers: “Bem pode ocorrer que um dia o caso de Donald Lang seja levado à Corte Suprema dos Estados Unidos. Bem pode ocorrer que as acusações contra ele sejam retiradas. Donald Lang nada sabe sobre esses assuntos. Leva as suas mensagens e dirige o seu cortador de grama. É um homem que trabalha, que age. Um dia, talvez — se não for tarde demais — pode ser encontrado um meio para libertá-lo da prisão, do confinamento solitário no qual tem sido forçado a passar toda a sua vida.”



Dirigido por Frank Perry, cujo currículo inclui Enigma de uma Vida (The Swimmer, 1968), O Massacre dos Pistoleiros (Doc, 1971) e Mamãezinha Querida (Mommie Dearest, 1981), O surdo-mudo estreou na TV americana em 27 de maio de 1979, na CBS. No Brasil, foi exibido pela primeira vez em 28 de fevereiro de 1981, na Globo.


Nos jornais brasileiros, as colunas de filmes da TV da época foram positivas. Paulo Perdigão, do jornal O Globo, escreveu: “Vigoroso e comovente drama feito para a TV. Relato competente e expressivo da solidão humana e das injustiças sociais” (O Globo, 28 de fevereiro de 1981). Fernando Morgado, da Folha, também reconheceu: “Elogiado drama de televisão, baseado num caso real, com história diferente e dizem que realizada com garra e alta voltagem." (Folha de S. Paulo, 28 de fevereiro de 1981). Já Hugo Gomez, do Jornal do Brasil, foi moderado: "Obra típica de TV, de relativa empatia" (Jornal do Brasil).

Desde 1971 (quando estava com 26 anos), Donald Lang viveu confinado em instituições para doentes mentais e prisões, passando por testes periódicos para avaliar sua capacidade de ser julgado. Mas o sistema nunca conseguiu achar uma solução para o caso de Donald, que faleceu no Chicago-Read Mental Health Center, instituição de saúde mental de Chicago, em janeiro de 2008, aos 63 anos de idade.

Donald Lang

O advogado Lowell Myers