02 maio 2015

O mal que se move sob o sol


Para comemorar o 125º aniversário de Agatha Christie, em setembro, o site oficial sobre a autora está promovendo uma votação para saber, entre os livros que ela escreveu, qual é o favorito de seus leitores. Meu voto já foi dado, embora a missão de eleger um único, entre tantos, não seja simples.


Difícil falar de Agatha Christie (1890-1976) sem repetir o que já foi dito ou escrito exaustivamente. Na internet mesmo existem milhares de sites com informações de todos os tipos sobre a vida e a obra da autora inglesa. A Rainha do Crime, como é conhecida, dispensa apresentações detalhadas.

Agatha Christie
Mais difícil ainda é escolher um de seus livros como 'favorito'. Foram 78 romances policiais, 19 peças, mais de 100 histórias curtas, duas autobiografias, vários poemas e seis romances "não crime" sob o pseudônimo de Mary Westmacott.

Entre tantos livros geniais que Christie escreveu, Morte na Praia (Evil Under The Sun) está entre meus favoritos. Como explica John Curran em Os Diários Secretos de Agatha Christie (Ed. Leya, 2010), Morte na Praia foi escrito durante 1938 e publicado pela primeira vez nos Estados Unidos como uma série no final de 1940:
"À primeira vista, Morte na Praia e "Triângulo de Rodes" parecem ter a mesma história. Ambas trazem Hercule Poirot, uma praia e dois casais como protagonistas. Em cada caso, um casal é formado por uma mulher sedutora e um marido circunspecto e o outro por um homem charmoso e uma "camundonga" (nas próprias palavras de Christie). E ambas as histórias exemplificam perfeitamente a fertilidade de Agatha Christie para tecer tramas, porque, apesar dessas semelhanças bastante relevantes, as soluções e os assassinos são completamente diferentes. (...)"

Morte na Praia foi oficialmente lançado em junho de 1941 pela Collins Crime Club (extensão da editora britânica William Collins & Co. Ltd.). Aqui no Brasil, foi publicado em 1976, com tradução de Vera Teixeira Soares, pela Nova Fronteira. A editora, que em 1969 havia adquirido os direitos para o Brasil da grande maioria dos títulos de Agatha, contabilizou 8,5 milhões de exemplares da autora vendidos até 2002. Nos últimos anos, a L&PM tem lançado os títulos de Agatha Christie com novas traduções e novos projetos gráficos.

Em 2013, Morte na Praia ganhou nova edição em português, na Coleção L&PM Pocket, com tradução de Rodrigo Breunig. Ainda que o título original - Evil Under The Sun - seja, ao pé da letra, "O mal sob o sol", na edição brasileira optou-se por Morte na Praia. Em Portugal, o nome dado foi As Férias de Poirot (1968, Editora Livros do Brasil). 

O título original em inglês se refere a uma passagem bíblica, do livro de Eclesiastes, capítulo 6, versículo 1: "There is an evil that I have seen under the sun, and it lies heavy upon humankind." ("Vi ainda outro mal debaixo do sol, que pesa bastante sobre a humanidade (...)"

O mais fascinante em Morte na Praia, além, obviamente, da irresistível trama policial, é a psicologia dos personagens. Agatha Christie sabia dar personalidade a eles de forma sutil, por meio de seus traços físicos, modo de vestir e opiniões, emitidas em diálogos aparentemente banais, mas muito reveladores.

A sinpose, como apresentada no site da L&PM, é a seguinte:
"Tudo o que Hercule Poirot queria naquele verão era ter alguns dias de paz no luxuoso hotel Jolly Roger, longe de crimes e de investigações. Mas quando Arlena Stuart passa por ele na praia, atraindo o olhar de todos os homens (bem como o ódio de todas as mulheres), ele desconfia que talvez suas férias não sejam tão tranquilas como esperava. De fato, no dia seguinte, um assassinato acontece.
Enquanto tenta descobrir quem é o responsável, Poirot percebe que não são poucas as pessoas naquele hotel que teriam um motivo para matar... (...)"

Na orelha da edição da Nova Fronteira, indagações não menos intrigantes a respeito do mistério:
"Que crime representa a beleza dessa mulher? Por que se torna ela, de repente, uma exceção, uma espécie de mancha, na paisagem repleta de luz, única forma estática e escura, longe, tão além de qualquer entendimento? A princípio, a única testemunha é o mar, quase a seus pés, mas indiferente. O mistério é um dos maiores desafios já encontrados por Hercule Poirot. Tem diante de si uma trama que ultrapassa o âmbito dos fatos policiais e salienta os segredos da própria vida dos homens em sociedade."


O pensamento avançado que Christie conferiu aos personagens da história é notável. Mencionar temas como independência feminina, no final da década de 1930, era, no mínimo, estar bem à frente de seu tempo.
Depois de alguns segundos Poirot observou: – Muita gente deve ter inveja da senhorita.
Rosamund Darnley disse friamente: – Ah, sim, é claro! – Pensou um instante e seus lábios sorriram com ironia. – Sim, eu sou a imagem perfeita da mulher bem sucedida! A criação artística me agrada – gosto muito de desenhar roupas – e a satisfação financeira também é ótima. Estou muito bem de vida, tenho uma ótima aparência, um rosto satisfatório e uma língua que não é excessivamente maledicente. – Fez uma pausa. Sorriu mais largamente. – Naturalmente... não tenho um marido! Nesse ponto fracassei, não acha, Mr. Poirot?
Poirot respondeu galantemente: – Mademoiselle, se a senhorita não se casou é porque nenhum homem foi bastante atraente. A senhorita ficou solteira por sua própria decisão e não por necessidade.
(...)
– Casar e ter filhos é o destino das mulheres comuns. Apenas uma mulher em cem – mais, em mil – é capaz de se realizar sozinha e chegar à posição que a senhorita atingiu. 
(Morte na Praia, pág. 23. Editora Nova Fronteira, 1976)

Em um trecho anterior da narrativa, outro diálogo já expressava uma maneira moderna de pensamento dos personagens:
– Ah, mas isso não é bem verdade! – Apontou [Hercule Poirot] para baixo. – Olhe ali, deitados em fileiras. O que são eles? Não são homens e mulheres. Não têm nada de pessoal. São apenas... corpos!
O Major Barry retorquiu em tom de admiração: – Algumas delas são bem bonitas. Um pouco magras demais, talvez.
Poirot exclamou: – Sim, mas que atrativo têm elas? Que mistério? Eu sou velho, pertenço á velha escola. Quando era moço mal se via um calcanhar. A visão das rendas de uma barra de combinação... que loucura! O arredondado de uma perna, um joelho, uma liga de meias...
– Feio, muito feio – protestou o Major.
– As coisas que usamos hoje em dia são muito mais práticas - aparteou Miss Brewster.
– Bem, Mr. Poirot – disse Mrs. Gardener, – acho, sabe, que hoje em dia os rapazes e as moças levam uma vida muito mais sadia e natural. Estão sempre juntos e... bem... eles... – Mrs. Gardener enrubesceu ligeiramente – não acham nada demais nisso, sabe o que quero dizer?
– Entendo - respondeu Hercule Poirot. - É deplorável!
– Deplorável? – exclamou Mrs. Gardener.
– Tirar todo o romance, todo o mistério! Hoje em dia tudo é padronizado! – Apontou com a mão para os banhistas. – Isso me faz lembrar o necrotério de Paris.
– Mr. Poirot! – Mrs. Gardener estava escandalizada.
– Corpos – arrumados em fileiras – como carne no açougue!
(Morte na Praia, pág. 11. Editora Nova Fronteira, 1976)


Fãs de Agatha Christie (e de romances policiais) certamente não vão se decepcionar com o livro e seu desfecho surpreendente, irresistível característica da autora, que vendeu bilhões de livros pelo mundo e foi traduzida para 45 línguas, sendo ultrapassada em vendas somente pela Bíblia e por Shakespeare.


Agradecimento:
Cristina Siqueira
http://agathachristieobraeautora.blogspot.com.br/

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