Durante minha adolescência, meu passatempo favorito era alugar filmes ou gravá-los da tevê. Eu era um espectador ávido, especialmente quando se tratava de filmes antigos. Por isso, para mim — e para muitos apreciadores dos clássicos de Hitchcock — a noite de 16 de janeiro de 1993 foi especial. Eu tinha 13 anos e fiquei ansiosíssimo quando a Globo anunciou a exibição do filme Festim Diabólico (Rope, 1948) para aquela data. Pela primeira vez, o filme seria exibido na tevê. Melhor ainda: sem intervalos comerciais. Juntei, entusiasmado, recortes dos jornais anunciando o filme. Dia 15 de janeiro, sexta-feira (véspera da exibição), a revista Programa, do Jornal do Brasil, dizia o seguinte:
Sábado é dia de teatro filmado. Dos bons, bem entendido. Em Festim Diabólico (1948), Alfred Hitchcock faz experiências com as marcações teatrais e o tempo real. O mestre dividiu a peça de Patrick Hamilton — inspirada em caso real — em oito tomadas de 10 minutos cada, filmadas ininterruptamente, sem cortes. O elenco, James Stewart e Farley Granger à frente, cortou um dobrado para não tropeçar nos diálogos e movimentos, milimetricamente estudados. É a maior curiosidade dessa história de crime perfeito, até certo ponto bem-humorada, que marcou a entrada de Hitchcock na fase do filme colorido.
Festim Diabólico é um marco do cinema por vários motivos. Foi o primeiro filme colorido de Hitchcock e o primeiro dos quatro que fez com o ator James Stewart. O longa foi todo realizado em tomadas de 10 minutos e editado de tal forma que se tem a impressão de que não houve cortes durante as filmagens. Foi rodado em um curtíssimo espaço de tempo (entre 12 de janeiro e 21 de fevereiro de 1948). A história foi livremente inspirada em uma peça de 1929, de Patrick Hamilton, que por sua vez havia se inspirado em um caso real de assassinato, cometido por Nathan Leopold e Richard Loeb, estudantes da Universidade de Chicago.
É um dos meus filmes favoritos de Alfred Hitchcock. A história, em vez de grandes reviravoltas mirabolantes, é carregada de suspense. O ritmo lento e teatral não atrapalha a tensão. Já sabemos desde o começo quem cometeu o crime. A pergunta é: os assassinos serão descobertos? Tudo se passa em uma elegante cobertura, em Nova York. Frios e arrogantes, Brandon (John Dall) e Phillip (Farley Granger) resolvem provar para si mesmos que são capazes que cometer o crime perfeito e ainda rir intimamente disso. Assassinam o colega de faculdade David (Dick Hogan), apenas por considerarem-se "intelectualmente superiores" em relação a ele. Estrangulam, com uma corda, o inocente rapaz. (Daí o título original, rope, que significa corda em inglês). Escondem o cadáver em um grande baú, que servirá como mesa no meio da sala de estar do apartamento deles. Ali, sobre o baú com o corpo do colega morto, será servido um jantar, durante uma festa íntima a ser realizada logo em seguida.
David (Dick Hogan), a vítima |
Os assassinos Phillip (Farley Granger) e Brandon (John Dall) |
A governanta Mrs. Wilson (Edith Evanson) entre os assassinos |
Os convidados são a família da vítima, sua noiva e seus amigos em comum. Entre eles, seu ex-professor, Rupert Cadwell (James Stewart). Talvez seus ex-alunos Brandon e Phillip tenham levado a sério demais suas teorias acadêmicas a respeito de como o assassinato eleva o homem acima da moral, tornando-o superior. Brandon é, na verdade, o mentor do assassinato e está sempre acompanhado por seu fiel escudeiro, o submisso e inseguro Phillip. Os dois jovens e presunçosos assassinos celebram, assim, seu diabólico feito, cercados por pessoas absolutamente alheias ao atroz crime. Tudo regado a champagne, patês e canapés. Mais mórbido, impossível. Mas tudo feito com extrema habilidade, perfeccionismo e a indefectível elegância característica de Hitchcock.
Os assassinos confraternizam com os convidados do "festim diabólico" |
O ex-professor dos assassinos, Rupert Cadell, entre os dois |
Mesmo assim, o filme foi proibido em várias cidades americanas, por causa da homossexualidade implícita dos personagens Phillip e Brandon. Uma ousadia para a época, por mais sutis que fossem as conotações homossexuais dos dois assassinos. (Só fui captar essas quase imperceptíveis nuances muitos anos depois. Quando vi o filme pela primeira vez, aos 13 anos, não notei nada "fora do comum"). O caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo de sábado, 16 de janeiro de 1993, trouxe uma matéria de destaque do crítico Inácio Araújo, sobre a exibição do filme. Abaixo, um pequeno trecho:
O espectador que ligar a TV hoje à noite e topar com "Festim Diabólico" não se espante: é uma das experiências mais radicais do cinema — um filme inteiro sem cortes —, e a Rede Globo promete apresentá-lo como se deve, isto é, sem intervalos. Para entender a dimensão da experiência — que a emissora anuncia como inédita em TV —, é preciso situá-la no tempo. Com o surgimento do neo-realismo, a montagem estava em baixa. Os planos longos, em que os movimentos da câmera substituem os cortes, eram o desafio. Hitchcock — então seu próprio produtor — resolveu levar essa ideia às últimas consequências: concebeu um filme para cenário único e só deu ordem de interromper a ação nos momentos indispensáveis, para troca de rolo (a cada dez minutos, em média).
(...) Recebido com certa frieza, acusado de teatralidade, "Rope" pagou o preço de sua audácia. Revisto hoje, o tanto de artifício contido em seu princípio cede às virtudes hitchcockianas: as marcações de câmera e atores aguentaram o tranco das longas ações sem perder o fôlego. Com isso, evita-se a monotonia a que tal experiência poderia condenar o projeto, caso em outras mãos.
Na noite daquele sábado, eu aguardava ansioso pela hora do filme. Assisti à novela das 8 (De Corpo e Alma), que na época começava às 8 e meia da noite, e depois comecei a ver o Supercine (Criança Amada - Uma História Real). Mas já estava caindo de sono. Sempre fui de dormir cedo. O jeito era programar o videocassete para gravar o filme, que estava marcado para às 23h20, na Sessão de Gala. Preparei minha Basf T-120 e a introduzi no videocassete. Coloquei na velocidade SLP (que rendia 6 horas de gravação), para garantir que a fita não acabaria no meio do filme. Atrasos na grade de programação já eram comuns.
No dia seguinte, acordei cedo para conferir se a gravação tinha saído direitinho e me tranquilizei ao constatar que ela começara mais de meia hora antes do filme (tive que adiantar um bom pedaço do lacrimejante Criança Amada). Meu pânico era sempre que a gravação começasse depois do filme já iniciado ou terminasse antes do seu final. De fato, a exibição de Festim Diabólico fora um evento na televisão aberta. Tanto que a Globo colocou o diretor Carlos Manga para apresentar o Supercine, falar um pouco sobre o filme e explicar como havia sido possível realizá-lo sem cortes aparentes. Um luxo. Depois da apresentação de Manga, o filme. Versão brasileira BKS (uma das dublagens que eu mais curtia).
Lembro-me de ter assistido ao filme várias vezes nos anos seguintes, até que a preciosa fita, devido ao uso intenso, envelheceu. Um belo dia, mais de dez anos depois, já muito desgastada, arrebentou-se. Mas então o filme não era mais raro como no começo da década de 1990. Depois cheguei a comprar o VHS original do filme e (bem mais tarde) o DVD.
Festim Diabólico é um dos cinco títulos de Alfred Hitchcock que ficaram conhecidos como "os cinco filmes perdidos de Hitchcock". O longa esteve inacessível ao público durante muitos anos. Ainda na década de 1960, o diretor havia comprado de volta os direitos de cinco de seus filmes, lançados entre 1948 e 1958, a fim de deixá-los como legado para sua filha, Patricia Hitchcock, depois que ele morresse. Assim que conseguiu esses direitos, Hitch tirou todos esses filmes de circulação, motivo pelo qual não podiam ser vistos no cinema, na TV ou em parte alguma.
Edição brasileira da fita de VHS de Festim Diabólico |
Após a morte do pai, em 1980, Patricia ficou em negociação por três anos até conseguir relançar os cinco filmes no cinema, em 1984. Em seguida, aproveitando o auge da era das fitas de vídeo, foram também lançados em VHS. Os outro quatro títulos são: Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), O Homem Que Sabia Demais (The Man Who Knew Too Much, 1956), Um Corpo Que Cai (Vertigo, 1958) e O Terceiro Tiro (The Trouble with Harry, 1955).
Revista Programa (Jornal do Brasil) de 15 de janeiro de 1993 |
De novo, novamente, outra vez me identifiquei demais com o post. A diferença é o "dormir cedo". Sempre fui de passar madrugadas acordado e as do início da 1993 foram as que mais passei. Nos sábados depois de "De Corpo e Alma" trocava de canal e assistia a "Topázio" no SBT e "Eu Compro Essa Mulher", depois as Gatas Molhadas no Sabadão Sertanejo. Infelizmente ainda não curtia o grande Hitchcock, e quando vi Carlos Manga apresentando achei que aquilo era uma grande 'frescura'. Por um preconceito tolo não usufrui deste momento tão marcante para (tele)cinéfilos.
ResponderExcluirEu cheguei a ver a chamada desse filme quando passou pela primeira vez na Globo, se não me engano tem no YouTube.. eu também gravava os filmes que passavam para assistir depois.
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