Existem
polêmicas capazes de alavancar a atenção que um filme recebe.
Também existem aquelas que sepultam a obra impiedosamente. Foi o
caso de Parceiros
da Noite
(Cruising,
1980), longa de William Friedkin que completa agora 36 anos. Um dos diretores mais badalados da
década de 1970, Friedkin já tinha, em seu currículo, Operação
França
(The
French Connection,
1971) e O
Exorcista
(The
Exorcist,
1973), dois filmes emblemáticos daquela década. Depois do
estrondoso sucesso de O Exorcista,
sua carreira entrou numa fase de produções menos expressivas. Até
que, em 1979, surgiu a ideia de filmar Cruising.
William Friedkin e Al Pacino nas filmagens de Parceiros da Noite (Cruising) |
O
filme teve como inspiração uma história real: uma série de
assassinatos de homossexuais, ocorridos em Nova York, entre 1962 a
1979. Outra fonte foi o romance A
Paquera
(Cruising,
1970), de Gerald Walker. Para o roteiro, Friedkin aproveitou o
esqueleto narrativo do livro, mas modificou totalmente a abordagem,
baseando-se em pesquisas de campo e muitas conversas com pessoas da
vida real.
O livro que inspirou o filme |
No
filme, o policial Steve Burns (Al Pacino) é escalado para investigar
os assassinatos brutais de homossexuais, que estavam ocorrendo em
Nova York. Achar o serial killer não seria fácil. Mas, motivado
pela ideia de crescer dentro da corporação, o policial aceita o
desafio de se passar por gay e se infiltrar nos guetos onde as
vítimas eram escolhidas: clubes de sadomasoquismo da cidade. Com seu
tipo físico semelhante ao das vítimas, Burns era a isca ideal.
Antes
mesmo da estreia, em fevereiro de 1980, o filme já gerava polêmica
e era rechaçado dentro e fora das comunidades gays. Talvez nem o
próprio Friedkin imaginasse que causaria tamanho rebuliço como
quando decidiu fazer Cruising.
Ativistas gays americanos se lançaram em uma campanha agressiva
contra a obra, alegando que um filme sobre um maníaco que matava
homossexuais carregava uma visão moralista, preconceituosa e
homofóbica. Até jornais importantes, como o Village Voice, aderiram
ao boicote. Várias panfletagens em favor dos gays chegaram a ser
feitas contra o filme nas filas dos cinemas.
A
revista Manchete
de
25 de agosto de 1979 trouxe uma matéria sobre as conturbadas
filmagens, que estavam acontecendo em Nova York, na época:
Das primeiras páginas dos jornais americanos à imprensa brasileira ou europeia, o assunto ganha ampla divulgação — enquanto grupos gays internacionais também fazem novas demonstrações, dando ainda maior publicidade ao filme. Jerry Weintraub, o produtor, talvez até por tudo isso, tem-se mantido na maior calma e limitou-se a dizer: "A versão deles é que estamos fazendo um filme contra os gays. Mas Cruising não é a história de homossexuais, e sim um thriller cuja ação se passa numa comunidade gay.
Revista Manchete (25/08/1979) |
A
coisa toda respingou em Al Pacino, um dos atores mais talentosos de
sua geração, acostumado a papeis de grande sucesso. Depois do
fracasso de Cruising,
sua carreira despencou e ele levou anos para se refazer do “trauma”.
A
verdade é que o filme não tem a intenção de dizer que os gays são
seres obscuros e pervertidos. O foco do filme é um gueto específico
— o dos clubes de sadomasoquismo e bares de 'pegação' da época.
Um mundo dentro de outro mundo.
Vale
lembrar que era o final dos anos 1970, ainda não havia AIDS e a
comunidade gay começava a se modelar. Tateando um lugar na
sociedade, quase sempre às escondidas, era comum que os gays se
esgueirassem em ruas mal frequentadas ou parques desertos durante a
noite, para dar vazão aos desejos sexuais reprimidos. Em Nova York,
nas vizinhanças mais decadentes, surgiram clubes para homossexuais
em busca de sexo anônimo e realização de fantasias
sadomasoquistas, especialmente envolvendo sexo grupal, roupas e
acessórios de couro.
É
exatamente nesse sombrio universo, de extrema promiscuidade e catarse
coletiva, que o policial Steve Burns, interpretado por Al Pacino,
mergulha. Burns não fazia ideia de como podia ser difícil a vida de
um detetive infiltrado no submundo em questão. Ainda mais um
submundo cheio de complexos códigos próprios, onde um policial
heterossexual e 'careta' como ele dificilmente conseguiria transitar
com naturalidade. Aliás, Steve é introspectivo, não tem muita
facilidade em articular frases e passa boa parte do tempo calado, o
que confere ao filme um clima de permanente solidão (mesmo nas
carregadas cenas dos abafados e lotados bares de paquera gay).
William
Friedkin abriu mão da narrativa clássica — a perseguição e a
consequente captura do assassino — e optou por se concentrar no
modo gradual, quase imperceptível, como a experiência vai alterando
a visão de mundo e os hábitos do policial, levando-o a questionar
sua própria sexualidade (ainda que sem entender direito) e seus
limites morais.
O
termo cruising,
em inglês, pode se referir tanto a “dar uma volta”, de carro, de
moto ou a pé, como a “sair à caça”, no sentido sexual. A
segunda conotação começou a ser difundida na década de 1970 e
virou uma gíria comum entre os homossexuais da época. Exatamente um
ano antes do começo das filmagens de Cruising,
o Village People lançou seu mais famoso álbum, intitulado
justamente Cruisin’.
O LP incluía o até hoje conhecidíssmo hit Y.M.C.A.
O grupo ficou muito famoso e fez enorme sucesso nas discotecas do
mundo todo. Os integrantes encarnavam personagens que normalmente
povoavam as fantasias gays e faziam alusão a símbolos de
masculinidade: um policial, um cowboy, um operário, um motociclista,
um índio norte-americano e um soldado. (A maioria dos personagens do
filme, diga-se de passagem, lembra versões mais ‘pesadas’ dos
integrantes do Village People. Hoje o visual é datado e caricato,
mas nos anos 70 era muito comum entre os gays.)
Na
época em que Cruising
foi
filmado, entre agosto e setembro de 1979, o cantor norte-americano
Smokey Robinson lançou a canção Cruisin’,
que, apesar de ter o mesmo nome do álbum do Village People, nada
tinha a ver com o grupo. A faixa de Robinson também virou hit,
apesar de seu significado ser o tradicional, de “passear” ou
“navegar”, e não ter nenhuma conexão com a gíria gay.
De
um jeito ou de outro, o termo cruising
foi
bastante difundido na época. No caso do longa, seu título virou
sinônimo de algo a ser condenado. Hoje, mais de três décadas
depois, é possível assisti-lo com um olhar distanciado das questões
da época. A atuação de Al Pacino é irrepreensível, como sempre,
e o ator fez com que seu personagem realmente parecesse confuso e
assustado e, muitas vezes, pouco à vontade. Fisicamente, Pacino deu
uma turbinada
nos
músculos e fez permanente, aparecendo pela primeira vez com cabelos
crespos. Apesar de um tanto quanto lento, há sempre algo
acontecendo no filme e no rumo da história. Muita coisa ficar no ar,
talvez devido aos vários cortes que Cruising
sofreu
em suas filmagens, sem falar nas mudanças do roteiro. Talvez o
diretor tenha deixado tantas coisas sem explicação de forma
proposital, seja no desenrolar do caso ou na própria personalidade
de Burns, que vai se tornando cada vez mais ambígua, à medida que
ele se mescla ao obscuro cenário e seus frequentadores.
Al Pacino de cabelos cacheados em Cruising |
A
atriz Karen Allen, que interpreta a namorada de Steve Burns, não
tinha conhecimento do roteiro antes de trabalhar no filme. William
Friedkin preferiu que ela ficasse sem saber o que acontecia com o
personagem de Al Pacino. Mais uma calculada estratégia para que o
clima de dúvida pairasse dentro e fora e Cruising.
Karen Allen e Al Pacino em Cruising |
Mesmo
para os padrões atuais, o filme tem cenas fortes e bastante ousadas.
Grande parte dos figurantes eram frequentadores reais de bares de
pegação e clubes gays da época, o que conferiu um realismo
extraordinário e, por vezes, até assustador à narrativa. Quanto a
esse aspecto, penso que a revolta dos gays não se justifica, pois o
filme foi absolutamente fiel na apresentação dos tipos, mesmo
estereotipados, desse grupo especifico de homossexuais (ainda que
eles não representassem todos os gays).
A
crítica da Folha
de S. Paulo
de
20 de maio de 1981 foi implacável já no título: “Homossexuais
numa versão inacreditável”. Para a época, era um retrato
realmente chocante de um submundo até então pouco (ou nada)
conhecido da grande população:
Todos os homossexuais americanos foram ver o filme, ainda que a maioria deles tenha saído revoltada. Houve protestos, petições indignadas e até passeatas que só fizeram aumentar os lucros e provocaram a introdução de um letreiro, antes do início do filme, explicando: "Não nos colocamos contra o mundo homossexual, apenas mostramos um pequeno segmento dele".
Quando
aluguei a fita e vi o filme pela primeira vez, há muitos anos, tive
certa dificuldade em diferenciar um personagem do outro, pois todos
eram parecidos entre si. Tanto fisicamente quanto no modo de se
vestir. Friedkin escolheu filmar os assassinatos em ambientes cada
vez mais escuros, de forma que se torna difícil identificar o rosto
do matador. Vemos o assassino sempre na penumbra, vemos sua roupa,
seus acessórios e até partes de seu rosto, em close,
mas nunca o vemos claramente.
Ao
longo dos anos, fui assistindo ao filme outras vezes e me
familiarizando com os detalhes. E comecei a ter a sensação de que o
assassino era interpretado por atores diferentes a cada cena. Depois
de assisti-lo dezenas de vezes, voltando, analisando, dando pausa e
revendo, descobri que, de fato, o ator que interpreta o assassino
variava a cada cena. Daí a dificuldade, nas primeiras vezes, em
diferenciar quem era vítima e quem era o serial killer.
Em
algumas cenas, um determinado ator vive o assassino. Em outra cena, o
ator que tinha interpretado a vítima é mostrado como o assassino. E
esse revezamento segue ao longo do filme, mas de forma bastante
sutil. Só mesmo após assistir muito atentamente, várias vezes, é
que minhas desconfianças tiveram confirmação. Como se a intenção
de Friedkin fosse justamente a de nos confundir, ou de nos dizer que
a identidade do assassino não é a questão-chave. E que, uma vez
que alguém se dispõe a uma experiência dessa, como a do policial
Burns, infiltrado em um mundo paralelo quase impossível de ser
imaginado, nunca mais será o mesmo.
Perto
do fim do filme, a identidade "definitiva" do assassino é
revelada. Mas as tramas paralelas ficam sem explicação. Algumas
pistas, no entanto, são dadas. Cabe ao espectador imaginar ou tentar
deduzir os possíveis desfechos. Cruising
se
mostra um misto de thriller, filme policial, mistério, slasher e
drama psicológico. A ação muda seu ritmo ao longo da história,
como se buscasse um ponto, sem, no entanto, encontrá-lo. A Folha
de S. Paulo
[20/05/1981]
não perdoou: “Depois de 100 minutos de hesitação, é natural que
o diretor não saiba como terminar o filme. Por isso, ele o encerra
de qualquer jeito, sem final, causando uma nova e derradeira
frustração.”
O
resultado foram três indicações ao Troféu Framboesa de 1981: Pior
Diretor (William Friedkin), Pior Filme (Jerry Weintraub) e Pior
Roteiro (William Friedkin).
No
Brasil, o VHS do filme foi lançado em 1991. Por causa do tema
polêmico, a Warner levou vários anos para tomar coragem e lançar
Parceiros
da Noite
em
DVD. William Friedkin tentou lançar o DVD com a versão original,
incluindo 40 minutos de cenas excluídas pela censura americana, mas
o tal material havia sumido misteriosamente do estúdio. Ninguém
sabe o que aconteceu. Aqui, o DVD veio sob o selo da Lume, sem
extras. Ainda hoje há especulação sobre os 40 minutos de cenas não
utilizadas, que permanecem inéditas. Se elas acrescentam explicações
importantes à historia, ninguém (além do diretor) sabe.
DVDs brasileiros de Cruising |
Em
2013, o ator James Franco e o roteirista Travis Matthews escreveram e
dirigiram o documentário fictício Interior.
Leather Bar.
No
filme, a dupla tenta recriar os tais 40 minutos de cenas descartadas
(que incluíam, supostamente, cenas explícitas de sexo) que se
perderam após o lançamento de Cruising.
A ideia do projeto não deixa de ser interessante, mas ele não
acrescenta nada ao filme original e nem às perguntas deixadas sem
resposta.
Para a gente, pareceu mais interessante retomar um filme polêmico que fracassou na bilheteria do que um clássico" — disse Matthews, quando esteve em São Paulo, em 2013, para apresentar o filme no festival Mix Brasil. "Sempre, quando alguém revisita o passado, busca como referência algo considerado perfeito. Nós não queríamos isso. Nosso interesse foi fazer um filme que usasse Cruising como ponto de partida para explorar o quanto avançamos desde então em termos de censura e em termos da representação da sexualidade gay no cinema. (O Globo, 06/11/2013)
Travis Matthews e James Franco |
Mesmo
que, ainda hoje, com a passagem do tempo e as mudanças de
perspectivas, Parceiros
da Noite
permaneça
incômodo, longe de ser facilmente digerido, o filme merece redenção.
É, sem dúvida, um dos mais intrigantes e perturbadores mergulhos
psicológicos mostrados no cinema.
Que post incrível! Até as informações sobre Interior. Leather Bar. estão aí!
ResponderExcluirSobre Parceiros da Noite, acho que a identidade do assassino acaba sendo o menos importante - tanto que há controvérsias e dúvidas imensas sobre ela - acho que a 'transformação' do personagem do Al Pacino é o aspecto mais importante. A questão é que o público esperava um formato tradicional, e o Friedkin preferiu ir além, confundir mais a cabeça das pessoas (que desde sempre têm uma preguiça atroz de pensar).
É um filmaço.