22 junho 2017

A visita de uma familiar história


É recorrente o uso de um determinado mote na teledramaturgia brasileira: a vingança. Uma mesma estrutura, diversas vezes utilizada em nossas novelas, garantiu o sucesso de várias tramas. Com algumas variações ao redor da história principal, o enredo é basicamente o seguinte: uma moça é expulsa de uma cidadezinha, ou levada a deixar o lugar, seja pelo julgamento inclemente e moralista de seus habitantes ou por circunstâncias abusivas. Injustiçada, a personagem retorna, muitos anos depois, em busca de vingança.

Ao que tudo indica, o público se identifica com esse tipo de heroína vingadora, uma espécie de “mocinha”, porém forte, independente e destemida, ao contrário das sofredoras, românticas e ingênuas mocinhas tradicionais. Essa estrutura ficou célebre com a peça A Visita da Velha Senhora (Der Besuch der Alten Dame), do suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), escrita em 1955.

A peça estreou no começo de 1956, na Suíça, e pouco depois, na Alemanha. Em poucos meses, conquistou plateias da França, Inglaterra, Japão e EUA. No Brasil, o espetáculo, dirigido por Walmor Chagas, foi apresentado por Cacilda Becker, em 1962. A atriz interpretou o papel da protagonista Clara Zachanassian.

Na provinciana Güllen, cidadezinha perdida em alguma parte da Europa central, nasce Clara, de família humilde. Aos 17 anos, apaixona-se perdidamente por um jovem ambicioso, Alfred, com quem vive um caso de amor. Grávida, é abandonada pelo rapaz, que pretendia se casar com outra moça da cidade, cuja família tinha algumas posses. Oprimida, Clara exige justiça para si e para o bebê que ia ter. Alfred e todos os homens "honestos" da cidade, porém, envolvem-na em um processo humilhante, após tramar para fazê-la parecer uma moça de índole duvidosa e indigna. Ao fim do processo, ela acaba sendo escorraçada da cidade. 


Cacilda Becker em A Visita da Velha Senhora
Obrigada a sair de Güllen, Clara torna-se prostituta para sobreviver e, depois, esposa  de um milionário mais velho, Zachanassian, dono de metade da Europa. "O mundo fez de mim uma mulher da vida e eu quero fazer dele um bordel", apregoa Clara. Décadas depois, já viúva, ela retorna a Güllen, com o propósito secreto de vingar-se da injustiça da qual fora vítima na mocidade. Para isso, ajuda a pobre cidade a se recompor e a progredir. Mas sua ajuda tem um alto preço: jogar uns contra os outros, revelando a verdadeira natureza hipócrita, mesquinha e cruel daquelas pessoas, incluindo seu maior alvo: Alfred. A integridade moral dos cidadãos não é inabalável. À medida que a cidade começa a antecipar seu futuro de prosperidade, cresce o número dos que reconhecem a injustiça cometida à Clara no passado.

Qualquer semelhança com tramas de telenovelas brasileiras não é mera coincidência. Exemplos não faltam. Coincidentemente, o canal Viva exibe duas dessas emblemáticas tramas atualmente: Fera Radical (1988) e Tieta (1989-1990), grandes sucessos da década de 1980.


Em Fera Radical (Rede Globo), de Walter Negrão, Cláudia (Malu Mader) quer vingar o extermínio de sua família, ocorrido 15 anos antes na pequena Rio Novo. Mesmo tendo deixado a cidade após o atentado, a moça nunca deixou de responsabilizar os Flores — família de fazendeiros ricos — pela tragédia de seu passado, quando ainda era uma menina. Ela retorna a Rio Novo e começa a trabalhar para os Flores, buscando esclarecer as circunstâncias da morte de sua família e com o intuito de vingar-se de seus supostos algozes. Para isso, Cláudia se envolve com os irmãos Fernando (José Mayer) e Heitor Flores (Thales Pan Chacon), cativa o patriarca Altino (Paulo Goulart) e desperta a ira da matriarca Joana (Yara Amaral).

Malu Mader em Fera Radical (1988)
Em Tieta (Rede Globo), novela de Aguinaldo Silva, baseada no romance homônimo de Jorge Amado, o ponto de partida remete mais diretamente à peça A Visita da Velha Senhora. Tieta (Betty Faria), agora rica, volta à empobrecida e esquecida Santana do Agreste, da qual fora expulsa na juventude, para acertar as contas com seu triste passado. Tieta havia sido escorraçada da cidadezinha 20 anos antes, a cajadadas, pelo pai, insuflado pela irmã Perpétua (Joana Fomm). A cidade testemunhou tudo calada. Agora Tieta retorna, exuberante, distribuindo presentes e trazendo o progresso para o lugar. A cidade toda, por interesse, passa a bajulá-la, sem nem imaginar que o verdadeiro intento da benfeitora é mostrar ao povo de Santana do Agreste que ele continua tão hipócrita, moralista e injusto quanto no passado.

Betty Faria em Tieta (1989)
Além desses dois sucessos, atualmente em exibição no Viva, outras telenovelas brasileiras utilizaram a mesma premissa, contada de formas diversas, mas que remetem à atemporal peça de Dürrenmatt. A trama central de Chocolate com Pimenta (Rede Globo, 2003-2004), de Walcyr Carrasco, é outro exemplo. Ana Francisca (Mariana Ximenes) volta à cidadezinha onde havia sido ridicularizada, prometendo a si mesma vingança contra os moradores interesseiros e cruéis que a haviam humilhado, incluindo seu amor do passado, Danilo (Murilo Benício).

Mariana Ximenes em Chocolate com Pimenta (2003)
Variações com protagonistas masculinos jurando vingança também não faltaram. Em Fera Ferida (Rede Globo, 1993-1994), de Aguinaldo Silva, Feliciano Júnior (Edson Celulari) retorna à pequena Tubiacanga 15 anos após ter sido expulso da cidade com seus pais, que acabaram assassinados. Sob a identidade de Raimundo Flamel, Feliciano vai se vingar dos inescrupulosos e corruptos de Tubiacanga, responsáveis pela perda de sua família, quando ele ainda era um adolescente. 

Voltando ainda mais no tempo, é possível encontrar exemplos mais antigos na teledramaturgia brasileira, como Cavalo de Aço (Rede Globo, 1973), de Walter Negrão, e Os Inocentes (TV Tupi, 1974), de Ivani Ribeiro. Ambas apoiaram suas tramas centrais na mesma ideia de A Visita da Velha Senhora. (Para mais detalhes sobre as novelas mencionadas, acesse o site Teledramaturgia). 

Edson Celulari em Fera Ferida (1993) e Tarcísio Meira em Cavalo de Aço (1973)
É claro que a transposição da peça não ficou restrita à TV. Em 1964, a história já havia ganhado uma versão no cinema, intitulada A Visita (The Visit). Estrelado e coproduzido por Ingrid Bergman e Anthony Quinn, o filme (ótimo, por sinal) foi dirigido por Bernhard Wicki e teve o roteiro adaptado diretamente da peça. O nome de Clara, no entanto, foi alterado para Karla, e o de Alfred para Serge.


O texto dramático de Dürrenmatt, apesar de escrito na década de 1950, é aplicável a qualquer época. Talvez seja essa uma das razões pelas quais as telenovelas por ele inspiradas tenham agradado ao público em diferentes épocas e situações. Além de retratar uma tragédia do ressentimento, um notável estudo de psicologia social e uma sátira ao poder do dinheiro, A Visita da Velha Senhora ainda dissecou temas como a corrupção e o poder. Não foi à toa que a peça consagrou seu autor mundialmente. "Sua visão de mundo é pessimista, frustrante, mas sempre comprometida com uma crítica total ao nosso tempo", reconheceu o crítico e historiador do teatro norte-americano John Gassner, sobre Dürrenmatt.


Friedrich Dürrenmatt
O autor classificou sua obra como uma "comédia trágica", pois escolheu a ironia e o humor agressivo para mesclar tragédia e comédia em sua amarga visão de mundo. Ele ataca o dinheiro, os mecanismos de ascensão ao poder, o casamento e o mau uso da tecnologia. Trata-se de uma uma peça engraçada, mas o cômico de Dürrenmatt envolve um sentido trágico que o espectador vai descobrindo aos poucos. 

"Dürrenmatt não é um otimista em relação ao gênero humano e não tem nenhuma ilusão sobre o homem. Onde quer que viva, sob que bandeira se esconda, o homem sempre acaba sucumbindo: ao poder, ao dinheiro, às instituições. Uns esmagam, outros sao esmagados e a decantada liberdade, proposta em tantas revoluções, não existe. Para Dürrenmatt, a liberdade só pode ser encontrada na arte." (A Visita da Velha Senhora, Coleção Teatro Vivo, Abril Cultural, 1976)

4 comentários:

  1. Texto muito interessante e um trabalho de pesquisa excelente. Aqueles que acham que Avenida Brasil inventou a vigança na dramarturgia devem estar em posiçao fetal se afundando em lágrimas.

    ResponderExcluir
  2. Esse tema sempre rende boas histórias, Tieta e Fera Radical nesse quesito são disparadas as melhores, digo até imbatíveis. Os embates entre Cláudia e Joana Flores, Tieta e Perpétua hipnotizam. Malu Mader, Yara Amaral, Betty Faria e Joana Fomm estão (são) Maravilhosas!!!!!!! Aplausos também para Aguinaldo Silva e Walther Negrão, respectivamente, Tieta e Fera Radical são suas melhores novelas.

    ResponderExcluir
  3. Assisti ao filme algumas vezes e tem cenas na novela "Tieta" que são quase idênticas, como a distribuição de presentes com aquele caminhão. Felizmente as novelas citadas (excetuo as dos anos 1970 por não ter visto) tiveram ótimos desenvolvimentos o que demonstra a força desse grande filão dramatúrgico.

    ResponderExcluir
  4. Fera Radical e Tieta foram as melhores tramas que soberam explorar esse filão. Aguinaldo Silva e Walther Negrão foram brilhantes. Hoje não consigo imaginar Claudia e Tieta com outras atrizes que nao fossem Malu Mader e Betty Faria, respectivamente, lindas, talentosas e maravilhosas.

    ResponderExcluir