01 março 2017

O estranho motorista


Não é incomum o cinema retratar países estrangeiros de forma idealizada, caricata ou mesmo cômica. Por muito tempo, nosso país foi considerado e mostrado como uma terra exótica pelos filmes de fora. Talvez ainda seja, embora a internet e a rapidez da comunicação tenham quebrado um pouco a ideia de que o Brasil é um paraíso tropical do terceiro mundo, povoado por clones de Carmen Miranda e Zé Carioca. Por muitos anos, foi também o destino favorito de fuga dos vilões do cinema, que buscavam se safar de todo tipo de problema com a polícia ou a justiça.

Um filme em especial me chama a atenção. Não por retratar deliberadamente o Brasil de forma errônea, e sim pela sucessão de "equívocos involuntários", por assim dizer. Trata-se do excelente filme A Esranha Passageira (Now, Voayger, 1942), de Irving Rapper. Um clássico do cinema e um dos melhores de Bette Davis, verdadeiro marco em sua carreira. É um melodrama típico dos anos 1940, bem arrebatador, que perpassa várias fases. Um filmaço para que aprecia o gênero. 

No filme, a atriz interpreta Charlotte Vale, uma solteirona oprimida pela mãe tirânica. Um dia, a cunhada de Charlotte convida um simpático e gabaritado psiquiatra para fazer uma visita à casa da família e, assim, avaliar se Charlotte precisa de um tratamento ou se é apenas uma pessoa reprimida. A resposta é um pouco dos dois. Não vou me estender em análises do filme (existem milhares na internet), pois meu foco aqui é falar da forma engraçada como o Brasil é mostrado em A Estranha Passageira.

O médico recomenda que Charlotte passe uma temporada em sua clínica, nas montanhas. Sob seus cuidados, Charlotte vai, gradativamente, saindo de sua própria concha. Já melhor, em vez de voltar para casa, ela embarca em um cruzeiro pela América do Sul, sob as instruções do médico, com o intuito de estimular sua autoconfiança e independência. É neste cruzeiro que ela conhece Jerry (Paul Henreid), um arquiteto casado e frustrado. Os dois iniciam um idílio amoroso, conscientes de que o romance deve ser enterrado para sempre quando o cruzeiro chegar ao final.

Paul Henreid e Bette Davis em A Estranha Passageira

Em meio a todo o melodrama, o filme garante um inusitado momento cômico, na sequência em que o cruzeiro chega ao Brasil, onde permanece por alguns dias. É possível ver algumas belas imagens do Pão de Açúcar, de Copacabana e do Cristo Redentor. Charlotte e Jerry ficam encantados pela beleza do Rio de Janeiro. Mas se metem em uma confusão com um atrapalhado taxista que não fala inglês.


O motorista conduz o casal por uma estrada de terra, numa região montanhosa do Rio, e se chama Giuseppe. Menos brasileiro, impossível. Para completar, ele fala em uma estranhíssima mistura de portunhol e italiano. E só sabe repetir uma lista de clichês associados ao Brasil: "Corcovado, Pão de Açucar, periquitos, papagaios, borracha". Em uma boate local, o que se ouve é um bolero mexicano. Tudo bem, isso não é impossível. Mas se a ideia era retratar o Brasil, os clichês foram todos equivocados. Claro que nada disso tira o brilho do filme. Mas não deixa de ser curioso ver o olhar estrangeiro sobre aquele Brasil da década de 1940. A língua, a música e os hábitos eram muito confundidos com os costumes e a língua de outros países da América do Sul. Bem, se até hoje isso ainda acontece, imagine mais de 70 anos atrás!






Ironicamente, o livro (Now, Voyager, de Olive Higgins Prouty) no qual baseia-se o filme, traz essa mesma cena, mas em Nápoles, na Itália. Teria o roteiro inicial seguido o livro à risca? Ou as locações foram modificadas depois? Talvez. De qualquer forma, o romance foi publicado em 1941, e também fez enorme sucesso. Os direitos para o cinema foram comprados imediatamente pela Warner, e o filme chegou aos cinemas americanos no final de outubro de 1942. No Brasil, estreou em maio de 1944.


A crítica da Folha de S. Paulo de 12 de maio de 1944 não deixou passar batido: "De fato, tudo se desenvolve de maneira aceitável, até o momento em que ela inventa de viajar. (...) Sem falar na inoportunidade de certos detalhes falsamente típicos, sem falar no chauffeur do Rio, que se chama Giuseppe e se exprime correntemente em espanhol, sem lembrar aquele inverossímil desastre de automóvel, essa viagem foi o maior desastre de Charlotte Vale." Mais adiante, disparou: "Isso que aí está daria um bom filme (excluída, é claro, a viagem ao Rio)."


Uma das cenas antológicas do filme se passa justamente no hotel do Rio de Janeiro, onde os personagens estão hospedados. É quando Paul Henreid acende dois cigarros de uma só vez e oferece um a Bette Davis. A Estranha Passageira teve três indicações ao Oscar: melhor atriz (Bette Davis), melhor atriz coadjuvante (Gladys Cooper) e trilha sonora (Max Steiner). Só este último ganhou. 


4 comentários:

  1. Sou fã da Bette Davis, mas não conhecia esse filme. Pelo que li, acho que vale a pena assistir. Vou aproveitar esse final de feriado para isso. Ah, e parabéns pelo texto, conheco o seu site a pouco tempo e estou curtindo os posts.

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    1. Muito obrigado, Juarez! Bom receber sua mensagem. Apareça sempre! :-)

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    2. Com certeza!

      (Eu não acredito que eu coloquei "a pouco tempo". Deve ter sido a ressaca)

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  2. Será que o filme foi deslocado da Itália para o Brasil por causa da Guerra?

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