14 abril 2016

Vidas roubadas, noivas no mar, mulheres de areia...



Já dizia o químico francês Lavoisier: "Na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma". No cinema e na tevê também é assim. Vira e mexe romances, dramas, guerras, tragédias e comédias são refilmados, remodelados, adaptados ou modernizados. A novela Mulheres de Areia é um ótimo exemplo de remake que deu muito certo. Tão certo que já está em sua quarta exibição e continua mobilizando o público e fazendo sucesso. Atualmente no canal Viva, a novela de Ivani Ribeiro foi exibida pela Globo em 1993 e se tornou um dos maiores sucessos do horário das seis. Mas era, na verdade, um remake da novela originalmente apresentada na TV Tupi, em 1973, também com grande sucesso.

Voltando ainda mais no tempo, mesmo a primeira versão da novela não teve um enredo totalmente original. Ivani Ribeiro usou como inspiração o filme Uma Vida Roubada (A Stolen Life), de 1946, estrelado por Bette Davis e dirigido por Curtis Bernhardt. O longa, por sua vez, era uma refilmagem de Stolen Life, produção britânica de 1939 dirigida por Paul Czinner. Acontece que mesmo a primeira versão era baseada no livro Uloupeny Zivot, romance do escritor tcheco Karel J. Benes (1896–1969), publicado em 1935. Ou seja, difícil saber quando se originou a ideia da trama de gêmeas com identidades trocadas. Como é possível ver, quanto mais voltamos no tempo, mais nos deparamos com o remake do remake.

O livro (à esquerda) e a primeira versão do filme (à direita)
Uma Vida Roubada é um filme marcante na carreira de Bette Davis, embora seja constantemente ofuscado por outros mais comentados e lembrados. Foi seu último grande sucesso da década de 1940 e o também o último filme da atriz a dar lucro para a Warner Brothers (durante o contrato de Bette com o estúdio, de 1932 a 1949).


Bette não quis fazer Alma em Suplício (Mildred Pierce, 1945). Joan Crawford topou, ganhou um Oscar e reergueu sua carreira, que na época andava meio em baixa. Bette preferiu estrelar Uma Vida Roubada. Com esse filme, realizou uma se suas maiores ambições: interpretar um papel duplo que lhe dava a oportunidade de ser tanto boa quanto má.

Sempre lutando por mais qualidade nas produções dos filmes e dos roteiros, a atriz pediu a Jack L. Warner (presidente da Warner Bros.) que a deixasse ser a produtora do filme — função até então inédita em sua carreira. Por um lado, era uma forma de Bette controlar todos os detalhes do processo de produção e, por outro, um reconhecimento dos Warner aos milhões que a atriz lhes trouxera nos últimos sete anos. 

Bette Davis como as gêmeas Kate e Pat em Uma Vida Roubada (1946)


O enredo era irresistível: Bette Davis interpretou as gêmeas Kate e Pat. A doce e meiga Kate se apaixona por Bill (Glenn Ford), um homem simples, de bom coração e sem grandes ambições. Mas é a ardilosa e sedutora Pat quem manipula a situação e desperta o interesse do rapaz, casando-se com ele. Kate, covardemente, se retrai e entra em depressão. Até que, um dia, passeando de barco juntas, as duas sofrem um acidente no mar, durante uma tempestade inesperada. Pat morre e Kate sobrevive. Confundida com Pat, Kate acaba assumindo o lugar da irmã e passa a viver sua paixão por Bill.

Glenn Ford e Bette Davis em Uma Vida Roubada
A produção era complicada e o estúdio ficou surpreso por Bette querer produzir seus próprios filmes. Julgavam que ela seria incapaz de enfrentar todos os grandes problemas. Tais problemas incluíam o espantoso total de trinta e seis cenários, um farol construído em Laguna Beach, três scripts combinados e uma cena assustadoramente difícil numa tempestade durante a qual a irmã perversa morre afogada. Sem falar no problema de combinar as tomadas nas quais uma das gêmeas acende o cigarro da outra, ou lhe afaga os cabelos. Herb Lightman [que foi cineasta e editor da American Cinematographer Magazine] explica de que modo o diretor de fotografia Sol Polito conseguiu o que queria:
"A cena de Bette acender o cigarro da outra gêmea era conseguida fazendo a Srta. Davis interpretar a cena diante de uma doublée, que lhe acendia o cigarro e fazia os outros movimentos a curta distância. Posteriormente, o rosto da doublée era 'apagado' e a cabeça da Srta. Davis literalmente colocada em seus ombros." (Bette Davis, de Charles Higham. Francisco Alves Editora, 1983)

Bette se dava muito bem com a roteirista Catherine Turney e chegou a colaborar com vários toques no roteiro. "Tínhamos intermináveis conversas no camarim de Bette a respeito de cada cena", disse Turney. "Às vezes o pessoal da equipe se zangava, porque não sabia o quanto de bom resultava dessas conversas. Curt [o diretor] concordou conosco em que deveríamos mostrar profunda motivação nos personagens. Não conservamos nada da primeira versão do filme, exceto a cena em que o cão não reconhece a gêmea boa, que se faz passar pela irmã perversa depois que esta morre afogada."


Mesmo com todas as limitações técnicas da década de 1940, o efeito das gêmeas na tela é convincente e muito bem executado, associado à interpretação impecável de Bette Davis. O resultado foi notável.

O maior problema do filme foi a grande cena da tempestade. Bette e sua doublée, Sally Sage, tinham que embarcar num barco que era sacudido por fios amarrados no fundo de um profundo tanque no estúdio. O tanque estava cheio de água agitada por enormes máquinas de vento que provocavam ondas de cinco metros de altura. As dimensões do tanque eram as de uma piscina olímpica. Bette e Sally não só precisavam agarrar-se ao barco, como também Sally era obrigada a manter-se de costas para a câmera, a fim de permitir as tomadas sincronizadas. (Bette Davis - Charles Higham. Francisco Alves Editora, 1983)

Com ritmo ágil e vigoroso, Uma Vida Roubada contém dois grandes desempenhos de Bette Davis. A atriz transita entre as duas personagens com impressionante desenvoltura, sem apelar para exageros nem histrionismos. Sua arma foi a sutileza na interpretação, diferentemente da imagem normalmente a ela associada, de geniosa e intempestiva. Infelizmente a Academia fez vista grossa para o grande desempenho da atriz no filme, que estreou há exatos 70 anos. Uma Vida Roubada recebeu apenas indicação para o Oscar de efeitos especiais. 


Ivani Ribeiro, uma das maiores autoras de novelas do Brasil, inspirou-se no filme para escrever Mulheres de Areia. Mas também aproveitou a ideia de uma radionovela de sua autoria, transmitida na década de 1950: As Noivas Morrem no Mar. Mais uma mostra de que as ideias estão sempre sendo recicladas e reaproveitadas.


Quando Mulheres de Areia estreou na Tupi, em março de 1973, ninguém imaginava que a novela entraria para a história da teledramaturgia brasileira. A crítica da Veja de 16 de maio daquele ano atestava isso ao reconhecer o êxito da trama:

“Os ingredientes  usados por Ivani Ribeiro em Mulheres de Areia, na Rede Tupi, não prometiam nada, mas absolutamente nada de diferente. As previsões de mais uma novela inofensivamente boçal, no entanto, falharam. Bem trabalhados por um grupo de atores de primeira categoria, os ingredientes resultaram numa trama razoavelmente densa de problemas emocionais, econômicos e sociais, que aos poucos vai reconquistando o antigo público das novelas das 20 horas, irremediavelmente perdido para a Globo.”

Eva Wilma em Mulheres de Areia (1973)
O casamento de Marcos (Carlos Zara) e Raquel (Eva Wilma)


Em outro trecho, a matéria explicava a sinopse: 

(...) Ivani, em Mulheres de Areia, conta a história de Virgílio Assumpção (Cláudio Correia e Castro), poderoso industrial paulista que interfere drástica e despoticamente na vida de seus filhos: Marcos (Carlos Zara) e Malu (Maria Isabel de Lizandra). Cleide Yáconis, no papel de esposa do poderoso déspota, Gianfrancesco Guarnieri, como Tonho da Lua, um gago neurótico, aparentemente retardado, e Eva Wilma, interpretando ao mesmo tempo os dois papeis das irmãs gêmeas Ruth — a boa e meiga — e Raquel — a má e ambiciosa —, completam o elenco principal. 

Marcos (Carlos Zara), Tonho da Lua (Gianfrancesco Guarnieri) e Ruth (Eva Wilma)

Ruth e Raquel (Eva Wilma)

Edson Braga, diretor da novela, explicou à revista como se dava o processo de filmagem e edição:

"A gente coloca uma espécie de cortina tapando a fita que está sendo gravada, e então só grava metade do tape. Depois, reconstitui-se o mesmo cenário, Eva troca de papel e, do mesmo ângulo, grava-se o outro lado da fita. Nas cenas em que Eva,  interpretando Raquel ou Ruth, tem que tocar no ombro da irmã, usamos um dublê, que aparece sempre de costas".



No final daquele mesmo ano, a Folha de S. Paulo também reconheceu o sucesso e a qualidade da novela:

(...) Conclusão: Mulheres de Areia é indiscutivelmente a telenovela líder de audiência no horário, e essa liderança, conquistada numa estação (Tupi) que estava totalmente por baixo em matéria de audiência, só pode ser resultado de um trabalho plenamente satisfatório para o público: da autora, Ivani Ribeiro, dos atores, Guarnieri, Zara, Lizandra e principalmente Eva Wilma. (Folha de S. Paulo, 11 de dezembro de 1973)

Quando o filme Uma Vida Roubada foi exibido na tevê, pela Tupi, em 1978, a sinopse do jornal foi a seguinte:

Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada (10 de abril de 1978)

Vinte anos depois, Ivani Ribeiro reescreveu Mulheres de Areia para a TV Globo e repetiu o sucesso da versão original. Dessa vez, a autora incorporou a trama central de outra novela sua, O Espantalho, exibida pela Rede Record em 1977. "As histórias de amor são eternas. Muda apenas o jeito de contá-las", explicou Ivani Ribeiro, em entrevista à Folha de S. Paulo de 1º de fevereiro de 1993. "Qualquer folhetim perdura se os sucessivos narradores mesclarem o conflito passional com temas contemporâneos e atualizarem os traços psicológicos dos personagens."

Ivani Ribeiro
Ruth e Raquel (Gloria Pires) no remake de Mulheres de Areia (1993)

Marcos Frota e Gloria Pires em Mulheres de Areia (1993)

Feitos os devidos ajustes e atualizações, o conflito das gêmeas Ruth e Raquel novamente prendeu a atenção do público e fascinou os telespectadores. A matéria da Folha explicou: 

Em 1973, quando escreveu a primeira versão de Mulheres para a TV Tupi, a mesma Ivani fez as irmãs cruzarem o caminho de Marcos. Fez Marcos — bonito, rico, romântico — se apaixonar por elas. E fez da paixão motivo de disputa entre as duas. Exatamente como na versão global. A diferença é que, durante os anos 70, Ruth parecia a madre Tereza de Calcutá e Raquel, um Saddam Hussein de saias. Agora, nem Ruth é tão boa assim, nem Raquel tão má.
"Abandonei o maniqueísmo dos contos de fada e humanizei as gêmeas. Hoje, o público já não acredita em personagens inteiramente bons ou ruins", diz Ivani. Seguindo tal raciocínio, a escritora recheou a nova Mulheres com bofetões de Ruth em Raquel. "Há duas décadas, o máximo que faria era chorar no quarto."
O "lado positivo" de Raquel se manifestará principalmente nas cenas com a mãe, Isaura. "Em 1973, Raquel maltratava a mãe. Agora, vai respeitá-la profundamente", afirma Ivani.
"Ruth se revelará tímida, caseira, meiga. E Raquel, extrovertida, carismática, sensual", define a autora.

Também em 1993, a autora deu uma entrevista para uma edição especial da revista Contigo!, inteiramente dedicada à Mulheres de Areia. Ao ser perguntada sobre o porquê de a novela ter feito tanto sucesso, Ivani respondeu:

Bem, acredito que a trama é perfeita e mexe com o emocional de todo mundo. A espinha dorsal é a familia: duas irmãs, a mãe, o pai. Os conflitos nascem aí... São universais. A partir desse núcleo, comum a qualquer telespectador, parti para uma história de amor. Tudo isso sem deixar de lado o realismo. 
O sucesso não estaria ligado simplesmente ao recurso folhetinesco das gêmeas idênticas?
— Claro que não. Seria muito fácil criar histórias com outros gêmeos, com sósias, pessoas semelhantes. Antes de mais nada, é bom lembrar que o público nao acredita mais em qualquer trama. É preciso ter uma excelente espinha dorsal, compor personagens que se identifiquem com o inconsciente coletivo, com as fantasias dos telespectadores. Desde quando comecei a reescrever a novela, sabia que a magia de Ruth e Raquel era irresistível. Mas só isso não sustentaria Mulheres de Areia. Foi então que pensei na aldeia dos pescadores, no Tonho da Lua… (Especial Contigo! - Mulheres de Areia, 23/08/1993)

Segundo a amiga e colaboradora Solange Castro Neves, o segredo da permanência das obras de Ivani estava no fato de "as tramas de Ivani não terem idade, porque são simples. Retratam o cotidiano do cidadão comum". (Jornal do Brasil, 19 de julho de 1995)

Gloria Pires e a dublê Graziela de Laurentis se preparando para as gravações
A tecnologia também ajudou no remake de Mulheres de Areia, embora a produção tenha sido muito trabalhosa. Antes da estreia, a revista TV Programa, do Jornal do Brasil, trouxe uma prévia de como andavam as gravações da novela, mostrando o casamento de Raquel e Marcos, em que Ruth era a madrinha:

Aqueles poucos minutos que serão vistos no capítulo 26 — a novela deve esterar dia 2 de fevereiro — custaram 11 horas de gravação na Capela da Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Urca. O truque funciona mais ou menos assim: quando as gêmeas Ruth e Raquel, interpretadas pela mesma Glória Pires, precisam dividir o espaço, entram em cena o diretor Carlos Magalhães, responsável pela técnica de unir as duas, e a atriz Graziela de Laurentis, dublê de Glória Pires. "Não sou exatamente dublê. Tenho que decorar todos os textos e contraceno com a Glorinha", corrige Graziela, escolhida pela semelhança com a estrela. "Onde tem Ruth e Raquel, eu estou junto", arremata ela que, no entanto, nunca aparece de frente ou mostra a voz.
(...)
A cena em que Raquel está ajoelhada no altar ao lado do noivo Marcos (Guilherme Fontes), sob o olhar da irmã Ruth, foi gravada primeiro com Graziela vestida de branco. A câmera focalizou a dublê de costas e de perfil, enquanto Glória, num vestido pêssego de Ruth, assistia ao casamento do altar, de frente para a irmã. Encerrada esta etapa, Glória Pires trocou de roupa, voltou vestida de noiva para repetir os mesmos movimentos de Raquel ao lado de Marcos, também em cena. Esta parte, em que é mostrado o rosto da noiva, foi gravada em cromakey, isto é, um fundo azul que permite misturar duas cenas, transformando-as numa só, dando a impressão de que Glória Pires se desdobrou em duas, ocupando lugares diferentes ao mesmo tempo. (TV Programa - Jornal do Brasil, 8 de janeiro de 1993)
Raquel (Gloria Pires) e Marcos (Guilherme Fontes) em Mulheres de Areia (1993)

Além do sucesso aqui no Brasil, ao ser exportada a novela também caiu no gosto dos telespectadores de outros países (mais de 60), a ponto de influenciar o cotidiano e até a política, como explica o especialista em teledramaturgia Mauro Alencar:

“O remake de Mulheres de Areia tornou-se forte arma politica  nas disputadas eleições russas. Boris Yeltsin programou a exibição de um capítulo gigantesco, com três horas de duração, para tentar impedir que seus eleitores viajassem para suas casas de campo (onde geralmente não há televisores) e deixassem de comparecer às urnas. A estratégia deu certo, e a novela estrelada por Gloria Pires ajudou o candidato de Yeltsin a se reeleger com uma diferença de mais de seiscentos mil votos.” (A Hollywood Brasileira - Panorama da telenovela no Brasil, de Mauro Alencar. Senac Rio, 2002)


O filme Uma Vida Roubada, baseado em um livro, ganhou um remake que o eternizou. Mulheres de Areia, baseada em uma radionovela, que por sua vez foi inspirada em um livro, também ganhou um remake que a colocou entre as telenovelas brasileiras de maior sucesso. Prova de que, quando uma história é boa e bem produzida, não importa quanta vezes seja recontada ou reprisada: vai sempre agradar.


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