26 abril 2016

Segredos femininos


Amizades, Segredos e Mentiras (Friendships, Secrets and Lies) estreou na tevê americana em 3 de dezembro de 1979, no canal NBC, e foi alardeado como "o primeiro filme para a tevê com elenco e equipe de criação formados totalmente por mulheres". Não há um só homem visto entre os personagens do filme, nem entre os figurantes. 


Baseado no romance The Walls Came Tumbling Down, de Babs H. Deal, escrito uma década antes, o filme é o produto típico de uma época em que grandes transformações começavam a acontecer para as mulheres. A luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres ganhava força, tanto profissional como socialmente, e a mulher divorciada começou a ser menos vista como um tabu. (Aqui no Brasil, também em 1979, estreou na tevê o seriado Malu Mulher, que tornou-se emblemático sobre esse assunto e fez enorme sucesso.)

O romance, publicado originalmente em 1968

Apesar de tratar-se de um drama, a história guarda um mistério que permeia todo o filme. Em uma pacata cidadezinha, quando o antigo prédio de uma irmandade — a Casa Kappa, da Universidade de Arconia — é demolido, o esqueleto de um bebê é encontrado na ventilação do edifício. Com a ajuda da perícia especializada, fica determinado que o bebê provavelmente fora jogado ali há cerca de 20 anos. Como a ventilação do prédio só foi aberta uma única vez nesse período, a dedução da época em que o crime foi cometido fica ainda mais precisa. Na ocasião, somente seis moças estavam nas dependências da irmandade, durante aquele verão.


Todas elas ainda vivem na mesma cidadezinha. A notícia causa alvoroço e as fofocas se espalham pelo lugar. Na verdade, apesar de terem estudado juntas e convivido por um bom tempo, não chegaram a ser amigas íntimas. Agora, já maduras, as seis mulheres acabam se reaproximando e remexendo nos respectivos passados. Antigas mágoas, desafetos, inseguranças, sonhos e lembranças afloram, ameaçando a união do grupo e afetando a vida particular de cada uma: Martha (Cathryn Damon), Maria Alice (Shelley Fabares), Joana (Tina Louise), Edith (Stella Stevens), Sandy (Paula Prentiss) e Ruth (Loretta Swit). O elenco, cheio de nomes conhecidos dos telefilmes americanos, conta ainda com Sondra Locke no papel de Jesse, a jovem repórter que põe lenha na fogueira e pretende descobrir qual das mulheres foi a responsável pelo “crime” de 20 anos atrás.

Em sentido horário: Martha, Maria Alice, Edith e Joana

Sandy (à esquerda) e Ruth 

Jesse
Martha, recém abandonada pelo marido, que a trocou por uma mulher bem mais jovem, é a chefe de Jesse no jornal local. Joana, mãe de uma adolescente, é uma viúva bonita e neurótica, que se entrega à bebida para aliviar a dor de sua vida vazia. Sandy é uma despachada professora de balé, moderna, com humor ácido e divorciada, que cria sua pequena filha sozinha. Edith, ingênua e meio infantil, dona de uma salão de beleza, é casada há vários anos com o mesmo homem, que quando bebe a espanca. Ruth é a mais centrada de todas; mãe de uma penca de crianças, adora a função de cuidar dos filhos e do lar e é compreensiva, amiga e ponderada. E, por fim, a reservada Maria Alice, que trabalha numa loja de roupas e tem uma vida sobre a qual as amigas pouco sabem.


A temática do grupo de amigas dos tempos do colégio que se reencontram 20 anos depois e relembram o passado (com consequências no presente) lembra bastante o enredo da novela Elas por Elas, de Cassiano Gabus Mendes, exibida pela Globo em 1982. Será que Cassiano assistiu ao filme na época? As similaridades levam a crer que isso não está fora de cogitação. Mas Amizades, Segredos e Mentiras também funcionaria bem nas mãos de Manoel Carlos.

Arte da novela Elas Por Elas (1982)

Arte do filme Amizades, Segredos e Mentiras (1979)
No quesito mistério, o filme cumpre sua função. A autora do aborto só é revelada nos minutos finais e é quase impossível descobrir qual delas cometeu o crime, já que as pistas apontam para diversas direções. Mas, se por um lado a ideia de fazer um filme só com mulheres foi algo inovador e ousado na época, por outro, trouxe certas limitações. Um exemplo: na cena em que o marido de Edith a espanca, não vemos o marido, apenas Edith gritando e chorando, enquanto cai  e se esgueira pelos cantos da sala. Vemos a atriz olhar para a câmera, como se estivesse confrontando o marido, cambalear para fora do campo de visão da câmera, quando apenas ouvimos os barulhos dos tapas do marido (que nunca é visto ou ouvido), e depois a atriz reaparece novamente no ângulo da câmera, agora com as marcas do espancamento.

Edith (Stella Stevens) apanha, mas não vemos o marido agressor

Tirando alguns poucos momentos incômodos como esse, o filme suscita boas discussões, do ponto de vista feminino. Mesmo que alguns assuntos soem datados hoje, outros ainda permanecem polêmicos, como o aborto.



Bem recebido de maneira geral, Amizades, Segredos e Mentiras também despertou críticas pouco condescendentes, como essa do jornal The Milwaukee Sentinel de 1.º  de dezembro de 1979:

O elenco e a equipe de produção, ambos só de mulheres, tentaram modelar uma história de mistério com uma mensagem sobre compaixão, novos papeis sociais para as mulheres, igualdade e amadurecimento. Mas só conseguiram criar uma produção descuidada, cheia de diálogos vazios, caracterizações bidimensionais e situações totalmente irreais. (Greg Moody)

E essa outra, do Lakeland Legender de 3 de dezembro de 1979: 

Dirigido por Ann Zane Shanks e Marlena Laird, o filme não consegue evitar algumas cenas ridículas. Em uma delas, a personagem de Tina Louise, devastada, perambula pelo salão de beleza no que parece ser a cena da loucura de Ofélia [heroína trágica da peça Hamlet, de William Shakespeare], ao que a amiga pergunta, docemente: "Tem certeza de que você está bem?". (...) (John O'Connor)

Joana (Tina Louise): "Tem certeza de que você está bem?"
 
O filme é hoje muito raro e já está fora da grade de programação das tevês mundo afora há vários anos. Eu o assisti na extinta Rede Manchete, em 1994, e o gravei na ocasião. Muitos anos depois, mandei passar a fita para DVD, antes que se deteriorasse de vez. Graças a isso, vez por outra, assisto a essa deliciosa obscuridade da tevê. Como diz uma das próprias personagens do filme: "Às vezes é preciso encobrir as coisas. Um dia a gente tira pra fora, antes de guardar de novo e, dessa vez, para sempre."



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