Arte é sempre uma coisa polêmica, capaz de gerar discussões intermináveis. Umas, prolíficas. Outras, quase fatais. Como o gosto é algo muito pessoal e o conceito de arte muito amplo, o bom mesmo é olhar para ela com bom humor.
Logo que entrei na faculdade, um dos professores pediu que lêssemos O que é arte (Ed. Brasiliense, 1995), de Jorge Coli, daquela coleção Primeiros Passos. Já na introdução do livro, o autor adianta: "Dizer o que seja a arte é coisa difícil. Um sem-número de tratados de estética debruçou-se sobre o problema, procurando situá-lo, procurando definir o conceito. Mas, se buscamos uma resposta clara e definitiva, decepcionamo-nos: elas são divergentes, contraditórias, além de freqüentemente se pretenderem exclusivas, propondo-se como solução única."
Por aí se percebe que o autor vai indicar vários caminhos, possibilidades, argumentações, convenções, mas nunca uma definição única e fechada. Mais adiante, na própria introdução, Jorge Coli esclarece: "Para decidir o que é ou não arte, nossa cultura possui instrumentos específicos. Um deles, essencial, é o discurso sobre o objeto artístico, ao qual reconhecemos competência e autoridade. (...)"
Qualquer coisa que eu coloque em uma sala branca ou galeria e dê um nome pomposo e sem sentido aparente poderá ser considerada arte? Será que é só atribuir um significado rocambolesco e intrincado, cheio de interpretações (ou viagens) filosóficas, psicológicas, sociológicas e artísticas e voilà, terei produzido uma obra de arte?
Aí reside o X da questão: cada vez mais, o leque do que é considerado 'arte' se amplia. TUDO hoje em dia pode ser considerado arte e, ao mesmo tempo, frequentemente, NADA do que vemos nos convence de que aquilo pode ser, de fato, arte.
Polêmicas à parte, prefiro olhar para tudo isso com olhos de quem acha graça de todas essas divergências de opinião e visão, mas de forma respeitosa e espirituosa. Gosto quando humoristas, cronistas ou até os próprios artistas brincam com esse conceito tão variável e tão controverso. Como é o caso do filme Manhattan (1979), de Woody Allen.
Em uma cena hilária, com aquele humor sofisticado e sutil, bem característico dos filmes de Woody Allen do final dos anos 70 em diante, seu personagem (Isaac) está com a namorada Tracy (Mariel Hemingway) vendo uma exposição de arte. Passeiam entre as obras, trocam opiniões despretensiosas e, de repente, encontram Yale (Michael Murphy), amigo de Isaac, com uma moça, Mary (Diane Keaton). Todos estavam vendo a exposição. Apresentações e cumprimentos feitos, começa o seguinte diálogo:
Isaac: Estávamos lá embaixo, na Galeria Castelli. Vimos a exposição de fotos. Incrível!
Tracy: Verdade, é muito boa!
Mary: Mesmo? Vocês gostaram?
Isaac: Das fotografias, no andar de baixo? Sim, são incríveis, grandiosas! Você gostou?
Mary: Humm não. Senti que são muito derivativas. Pra mim pareciam cópias da obra de Diane Arbus, mas sem a genialidade.
Isaac: Sério? É... Não gostamos tanto quanto da escultura de acrílico.
Mary: Mesmo? Então você gostou do acrílico.
Isaac: Por que? Você também não gostou do acrílico?
Mary: Hummm... Interessante. (faz cara de desdém)
Isaac: Achei muito melhor que o cubo de aço. Você viu?
Mary: Aquilo sim foi genial! Totalmente genial.
Isaac: O cubo de aço, você achou genial?
Mary: Sim. Achei que tem muita textura, entende? É perfeitamente integrado. Tem um tipo maravilhoso de capacidade negativa. O resto das coisas lá embaixo é besteira.
É claro que lendo não tem tanta graça. As expressões dos personagens na cena são impagáveis. O constrangimento pela divergência de opiniões, a vontade de demonstrar a compreensão das obras, o gosto pessoal, enfim, essa cena de Manhattan sempre me vem à memória quando vejo pessoas discutindo arte. Todos querem parecer intelectuais, cultos, complexos e, ao mesmo tempo, morrem de medo de dar bandeira de que aquela é apenas uma humilde opinião pessoal.
Carlos Eduardo Novaes, em seu divertidíssimo livro de crônicas O Caos Nosso de Cada Dia (Ed. Nórdica, 1974), abre o capítulo "O Vale Tudo da Arte" assim:
Custei mas afinal compreendi por que no dia em que - nos meus sete anos - equilibrava um castiçal de opalina em cima de um raro bibelô de porcelana chinesa, em cima de uma fruteira de cristal, em cima de uma bandeja de prata, minha mãe, entrando de repente na sala, me repreendeu:
- Não faça arte, menino.
Afinal compreendi. E sinto agora uma certa frustração. Se minha vocação não tivesse sido cortada na infância, hoje com certeza eu - como qualquer um de vocês - poderia estar me consagrando nesta XII Bienal de Arte de São Paulo. Sim, porque, a considerar pelos trabalhos expostos, a Bienal procurou reunir muito mais arteiros do que artistas.
Apesar de escrita no começo dos anos 70, a crônica continua atualíssima. De lá pra cá, em matéria de arte, acho que nada mudou. A coisa só aumentou: cada vez mais, vemos instalações, pinturas e esculturas que nos deixam atônitos (se é no bom ou no mau sentido, fica a critério de quem observa). Um punhado de privadas enfileiradas, um monte de carrinhos de supermercado espalhados num salão, tijolos de obra empilhados de forma aleatória, ferragens distorcidas, objetos comuns jogados aparentemente com displicência, telas com borrões que não se diferenciam de rabiscos feitos por crianças de jardim de infância e por aí vai... É o vale tudo da arte, com o qual Carlos Eduardo Novaes brincou em sua crônica.
Instalação do artista plástico José Damasceno (1997) |
O tema foi, é e sempre será controverso. Para o ator Peter Ustinov (1921-2004), "Se Botticelli vivesse hoje, estaria trabalhando para a Vogue". Oscar Wilde (1854-1900) foi bem mais radical: "Toda arte é absolutamente inútil". Já o o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw (1856-1950) prognosticou: "Se mais de 10% da população gostar de um quadro, ele deveria ser queimado. Deve ser muito ruim". Para a escritora Dorothy Parker (1893-1967), "a arte é uma forma de catarse", enquanto para Voltaire (1694-1778) "é preciso ter o diabo no corpo para alcançar êxito em alguma arte". Picasso (1881-1973) disse que "a arte representa a mentira que nos faz perceber a verdade". As opiniões são as mais variadas e diversas possíveis. Mas gosto particularmente do que disse o historiador e intelectual americano Richard Hofstadter (1916-1970): "A vanguarda de ontem é o chique de hoje e o clichê de amanhã".
Acredita que vi esse livro do Coli esses dias no sebo?
ResponderExcluirNietzsche dizia "Temos a arte para não morrer da verdade."
Adorei a temática do post, gera várias reflexões e não deixa de ser uma arte!
E ainda citando meu Woody Allen favorito <3 Essa cena! Texto ótimo para um fim de domingo!