31 dezembro 2011

Feliz medo novo!

“Hoje é um novo dia de um novo tempo que começou...”
Assim diz a vinheta de final de ano da Globo. E cada vez mais eu me espanto com esse “novo tempo” que começou não sei quando. Aliás, está sempre começando. E cada vez parece passar mais rápido.

Remexendo na minha papelada guardada, entre revistas e livros empoeirados e amarelados, reli uma crônica que o jornalista Fausto Wolff (1940-2008) escreveu para O Pasquim em janeiro de 1979, intitulada “Meu medão”. Tudo bem, os tempos eram outros, mas os medos são medos. Ontem e hoje. Com algumas variações, claro, mas é impossível não sentir.

Não quero ser pessimista, só estou aqui pensando com meus botões que apesar de sempre fazermos dezenas de promessas em toda virada de ano e de desejarmos sempre coisas lindas, nossos medos estão sempre ali, encobertos pelos votos de felicidade, amor, paz, saúde dinheiro etc... Os novos tempos começam, acabam, recomeçam e os medos ressurgem. Por isso resolvi transcrever uma (grande) parte dessa crônica que fala justamente dos medos que pairam sobre nós enquanto tentamos afugentá-los e esquecê-los temporariamente.

Meu medão
O Pasquim - janeiro / 1979 
A verdade, meus chapinhas, é que estou entrando no ano novo com medo. Sempre tive medo, mas nunca tanto quanto agora: estão roubando gente do Brasil para engaiolar no Uruguai; 296 milhões de dólares desaparecem no caminho do Bonn; estão querendo emancipar os índios, ou seja, exterminá-los de uma vez para sempre; o governo explica as eleições mas não explica as acusações de fraude e corrupção nos altos escalões; a verba para o Ministério do Exército é de 400 bilhões de cruzeiros e até agora não se sabe a da educação: Jarbas Passarinho pede que a oposição não seja agressiva se quer evitar represálias (eufemismo para um sexto ato); um sujeito por uma fatalidade qualquer cai numa cadeia brasileira e jamais se saberá o que aconteceu com ele. E isso tudo somente aqui em casa! Se eu começar a pensar nos genocídios do Irã e da Nicarágua; nos americanos doidinhos para tomarem cianureto com Fanta Uva; nos russos que podem matar à grande distância, com raios laser; na matança do criouléu na África do Sul, aí mesmo é que o meu medo se torna metafísico e invade o macrocosmo. (...) Cuidado leitor, este mesmo cidadão também tem a sua bombinha preparada para a sua cabeça, para a cabeça que pensa que as notícias que ouve no rádio, vê na televisão ou lê nos jornais se passam numa outra dimensão, em um inferno particular reservado especialmente para OS OUTROS. Cautela, amigo, os outros somos nós.

Meu medão começou na manhã seguinte à minha visita à Usina Atômica de Angra dos Reis. Depois de sonhar com o velho Mao Tsé-tung afogando-se dentro de uma garrafa de Coca-Cola tendo nas mãos o I Ching, acordei todo suado. Na longa viagem até o banheiro encontrei uma das filhas da minha mulher que me disse qualquer coisa simpática. Seus bracinhos pesavam sobre os meus ombros cansados. Minha boca recusou-se a dar passagem a uma linguagem de invento. Afinal, ela aos seis anos de idade, já sabe tudo sobre Dancin' Days. Em frente ao espelho olhei para os meus 38 anos e automaticamente passei a pasta de dentes sobre a escova. Fiquei com medo do dentifrício. Que fórmula estou botando na minha boca? Até onde estou me poluindo? Medo do desodorante. Medo de toda a quimicália que nos circunda para nos fazer mais limpos, mais higiênicos, mais belos, mais glamourosos, mais escravos.

Meus caros pais e mães de família: antes de se deleitarem com Dancin' Days hoje à noite, tenham em mente os seguintes números: Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França, Índia e China já explodiram bombas atômicas. Os seguintes países terão bombas atômicas nos próximos anos: Japão, Canadá, Argentina, Brasil, Paquistão, África do Sul, Israel, Suécia, Espanha, Suíça e Alemanha Ocidental. (...) Que tal? Querem ou não querem me matar? Tenho ou não tenho que ter medo de algo mais que os pivetes da Saint Roman? (...)
Cassandra informou os troianos sobre o perigo do cavalo grego. Será que não está na hora de começarmos a procurar o cavalo antes que a bomba nuclear caia na minha cabeça? Fora de brincadeira, meus chapinhas, eu estou com medo. Feliz Ano Novo!

O texto pode ser lido na íntegra no livro O dia em que comeram o ministro (Ed. Codecri, 1982), uma reunião de crônicas que Fausto Wolff escreveu para o Pasquim. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário