24 agosto 2016

Irresistíveis escórias e lixos


Os prazeres e mistérios de gostar de filmes malfeitos, pouco conhecidos e obscuros me fazem enveredar por caminhos tortuosos às vezes, mas não menos fascinantes. Há alguns anos assisti a Poor White Trash 2 (1974), filme de um diretor SUPER obscuro, para quem até já dediquei um post aqui no blog: S. F. Brownrigg. Ele dirigiu e produziu meia dúzia de filmes de terror na década de 1970, todos de baixo orçamento e desconhecidos do grande público. O filme em questão, Poor White Trash 2, também é conhecido como Scum of the Earth


Como eu já conhecia o trabalho do diretor e o estilo modesto, canhestro e assustador de seus filmes — que muito me agradam, por sinal — foi natural que tivesse assistido a Poor White Trash 2. O mais intrigante, no caso, não foi o filme em si e sim esse "2" no título. Não se trata de continuação de nenhum filme, como eu já havia lido e pesquisado. Logo, por que diabos esse 2?

O que o diretor quis fazer foi um filme que parecesse tão chocante e ousado quanto um dos anos 1950, chamado Poor White Trash (cujo título original era Bayou). As histórias nada tinham a ver entre si, mas ele queria que seu filme fosse o equivalente, em matéria de “ousadia”, àquele que tinha sido feito décadas antes. Daí o nome Poor White Trash 2. Claro que fui atrás do outro filme também, para ver o que ele tinha de tão "repulsivo" assim.


Como é muito comum nos EUA, os filmes costumam ser relançados com títulos alternativos. Bayou, dirigido por Harold Daniels em 1957, também é conhecido como Poor White Trash. É a história de Martin Davis (Peter Graves, o piloto de Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu!), um jovem e charmoso arquiteto nova-iorquino que participa de uma concorrência para o projeto de um novo centro cívico em Nova Orleans. O chefe o convida para uma visita à cidade, para ver se Martin vai ganhar a competição e ter seu projeto escolhido. Em uma festa típica da região, o arquiteto conhece Marie Hebert (Lita Milan), a jovem beldade local, uma moça de 17 anos (mas parece ter 30) que vive solta a correr pelas redondezas, é amiga dos pescadores da comunidade e mora com seu velho e pobre pai alcoólatra em um humilde barraco. Martin se apaixona instantaneamente pela sexy e impetuosa Marie. O problema é que ela é o objeto de desejo do sórdido Ulysses (Timothy Carey), o valentão da cidade e praticamente o dono da vila de pescadores. A partir daí, disputas, chantagens, trapaças e ameaças entram em cena. Parece roteiro de novela mexicana.

Peter Graves e Lita Milan em Bayou/Poor White Trash (1957)
Lita Milan e Timothy Carey em Bayou / Poor White Trash (1957)
No final das contas, trata-se de um melodrama extremamente datado e pobremente realizado, mas com uma história que até prende (talvez pela excentricidade e exotismo dos caricatos personagens). Mais tímido do que ousado, o filme traz uma pequena lição de moral, ainda que de forma superficial: é preciso lutar por nossos direitos. Distribuído pela United Artists, Bayou não causou impacto ao ser lançado em 1957. Em 1960, foi adquirido pela Cinema Distributors of America, que o reeditou, acrescentou novas cenas e mudou seu título para Poor White Trash (não confundir com um filme feito em 2000, também chamado Poor White Trash, do diretor Michael Addis, que nada tem a ver com essa história). A intenção com a mudança de nome foi fazer o filme parecer mais sensacionalista, sórdido e ousado. Relançado em 1961, Bayou — rebatizado de Poor White Trash — acabou conseguindo sucesso comercial e ficou, durante anos, sendo exibido nos circuitos de cinemas de drive-in americanos. 


Convém ressaltar o significado da expressão que dá nome ao filme. "White trash", traduzido literalmente, significa "lixo branco". De maneira geral, trata-se de um termo norte-americano depreciativo, usado para se referir a pessoas brancas de classes sociais menos privilegiadas, como operários, camponeses, pescadores e lavradores, entre outros. O dicionário Merriam-Webster informa que o primeiro uso do termo ocorreu em 1822. Mas por volta de 1855, já era utilizado por brancos de classe alta e era de uso comum entre todos os sulistas. A partir da década de 1950, white trash também passou a ser usado, de forma sarcástica e sensacionalista — e não menos pejorativa —, tanto para condenar como para justificar exemplos recorrentes de maus comportamentos característicos das camadas mais pobres da sociedade, como bebedeiras, xingamentos, badernas, promiscuidade, desleixo, sujeira e maus modos, em geral. Portanto, batizar um filme, no final da década de 1950, de Poor White Trash ("pobre lixo branco") significava atrair uma atenção enorme. O público ia querer ver como vivia aquela gente pobre, sem modos e como era aquele estilo de vida tão execrável.

Scum of the Earth / Poor White Trash 2 (1974)
A confusão se dá pelo seguinte: Bayou tem como título alternativo Poor White Trash. Voltando ao assunto do início do texto, o diretor S. F. Brownrigg pegou carona nessa ideia e fez, em 1974, o infame Scum of the Earth, que foi rebatizado de Poor White Trash 2 (mas nada tem a ver com o filme de 1957 e tampouco se trata de uma continuação).

Em Scum of the Earth / Poor White Trash 2, Helen (Norma Moore) e seu marido Paul (Joel Colodner) são jovens recém-casados que vão passar a lua-de-mel em uma pacata casa de campo no bosque. Mas o idílio do casal é interrompido quando um misterioso assassino com um machado mata Paul. Em pânico, Helen foge desesperada pelo bosque e encontra Odis Pickett (Gene Ross), que mora na única cabana do local. Ele convence a pobre moça a passar a noite com ele e sua família, que inclui sua esposa Emmy (Ann Stafford), a filha Sarah (Camilla Carr) e o filho retardado Bo (Charlie Dell). Sem ter para onde ir e abalada, Helen acaba ficando com a estranha família de maltrapilhos e percebe que, além de esquisitos, eles são moralmente depravados.

Scum of the Earth / Poor White Trash 2 (1974)
Lançado originalmente em 1974 como Scum of the Earth ("escória da Terra"), o filme foi reintitulado e distribuído nos EUA como Poor White Trash 2. Acontece que Scum of the Earth é também o nome de um filme de 1963, que nada tem a ver com o de 1974. Novamente o labirinto trash me levou ao outro Scum of the Earth, uma historinha ingênua que pretendia chocar o público daquele puritano começo dos anos 1960.

Scum of the Earth, dirigido por Herschell Gordon Lewis e lançado em 1963, é um filme americano do tipo exploitation. (Exploitation é um gênero de filmes apelativos, que têm por objetivo obter sucesso comercial abordando, de forma sensacionalista, a temática que tratam. Em geral, são chamados de "filmes B" e não costumam trazer grandes astros, mas contêm chamarizes de apelo como efeitos especiais pobres e exagerados, sexo, violência, drogas, nudismo, bizarrices, rebeldia e coisas do tipo.)

No filme de 1963, uma ingênua e inocente colegial, Kim Sherwood (Vickie Miles, que mais parece uma mulher de 35 anos fantasiada de colegial), precisa pagar a mensalidade escolar. Sem dinheiro, acaba atraída para um trabalho relativamente fácil, que consiste em posar glamorosamente para fotos comerciais, como modelo amadora. Embora receosa, ela aceita e, após fazer as fotos, passa a ser chantageada pelos sórdidos fotógrafos, que ameaçam difamá-la para seu pai. Os tais fotógrafos fazem parte de uma quadrilha cujo chefe vende fotos ilegais de moças adolescentes nuas, sendo abusadas e degradadas. Eles obrigam Kim a fazer fotos cada vez mais sensuais e explícitas. O pérfido e imoral Mr. Lang (Lawrence Wood), do grupo que alicia as garotas, obriga Kim a atrair novas mocinhas incautas para a armadilha. Essa ideia, por si só, já era chocante para os padrões da época. Tanto que o filme atiça o público, mas apenas sugere a violência sexual. Após muitos dilemas e arrependimentos, a ingênua mocinha é salva no final e aprende a lição. Mas tudo no filme é tão amadorístico que ele é, no mínimo, risível.

Scum of the Earth (1963)
Scum of the Earth (1963)
Scum of the Earth (1963)
Scum of the Earth (1963)
O final, descaradamente moralista, é sombriamente narrado, em off, em tom de advertência: “Para cada garota que escapa da armadilha, outra garota cai na mesma armadilha. Só uma sociedade em alerta pode livrar-se daqueles que caçam em busca das fraquezas humanas, daqueles que são... a escória da humanidade!”

Scum of the Earth (1963)

E assim a confusão dos títulos iguais para filmes diferentes foi desfeita. Para os admiradores de filmes B e produções obscuras, recomendo esses filmes. Bayou/Poor White Trash (1957) e Scum of the Earth (1963), apesar de se pretenderem "chocantes", são bem ingênuos, mal produzidos e datados, mas têm aquela característica quase irresistível dos filmes desse gênero. Já Scum of the Earth/Poor White Trash 2 (1974) é um filme incômodo, que mistura terror psicológico e violência, com uma lúgubre atmosfera de degradação. Quanto ao outro filme, feito em 2000 e também chamado de Poor White Trash, não se trata de um filme trash. É apenas uma comédia boba, com alguns nomes que fizeram certo sucesso no passado (Sean Young, William Devane), e satiriza o estilo de vida típico do chamado poor white trash (pobreza, jovens rebeldes e sem modos, famílias desleixadas que vivem em trailers, homens beberrões, mulheres provocantes).


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